domingo, 8 de março de 2009

Clássicos do dia 7: Wendy Carlos - A Clockwork Orange



Observação: Se você resolver procurar esse álbum em sebos ou mesmo na internet, é bem provável que se depare com o nome WALTER Carlos. Acontece que Wendy nasceu Walter. A cirurgia de mudança de sexo aconteceu em 1972 (não sei se foi antes ou depois do lançamento de A Clockwork Orange), mas as gravadoras resolveram desconsiderar o fato de que seu pênis havia sido extirpado e continuaram lançando seus álbuns como Walter. Só em 1979, com Switched-On Brandenburg, ela foi finalmente aceita como Wendy. Aqui, no entanto, sempre irei me referir a ela como MULHER (o que já era muuuito antes da operação). Questões de gênero elucidadas, vamos ao que interessa: música.

A utilização de recursos eletrônicos para se fazer música é algo que remonta à virada do século 19 para o 20: o telharmonium foi inventado em 1897, o theremin, entre 1919-1920, e o Ondes Martenot, em 1928. A estes instrumentos precursores, se seguiram muitos outros, todos enormes e difíceis de serem manipulados. Um computador foi utilizado pela primeira vez para se criar música em torno de 1950-51. O nome da máquina era CSIRAC e dá uma olhada no tamanho do bichinho:




Olhando para esses instrumentos alienígenas não é de se estranhar que a música eletrônica tenha se mantido restrita às pesquisas acadêmicas e à vanguarda da vanguarda da vanguarda da música erudita. Para que ela pudesse sair da concha, seria preciso criar um instrumento mais simples, capaz de ser compreendido e executado por meros mortais. Um passo importantíssimo foi dado por Robert Moog, que, em 1965, apresentou ao mundo o sintetizador Moog:




Hoje, parece um trambolho complicadíssimo, mas foi uma revolução para a época, principalmente por possuir um teclado como interface. Em 1967, a engenheira de gravação Wendy (então Walter) se interessou pela novidade e encomendou alguns módulos. Entrou em contato com Robert Moog e sugeriu algumas mudanças no instrumento, o que Dr. Moog atendeu. No ano seguinte, Wendy lançou Switched-On Bach, álbum com peças de Johann Sebastian Bach executadas no sintetizador. Assim como o próprio Bach compôs O cravo bem-temperado para demonstrar que o temperamento e, em consequência, o sistema tonal, funcionavam, Wendy Carlos gravou Switched-On Bach para provar que a música eletrônica podia, enfim, sair do gueto. Para reforçar as possibilidades do sintetizador, ela lançou no ano seguinte o álbum Well Tempered Sinthesizer, uma coleção de peças barrocas também executadas ao Moog. A partir daí, já não havia mais o que provar, e Wendy ficou livre para criar A Clockwork Orange, trilha sonora do filme de Stanley Kubrick.

A história por trás desse disco é um desses casos impressionantes de sincronicidade: Wendy havia acabado de descobrir o vocoder e escolheu o quarto movimento na Nona Sinfonia de Beethoven para criar a primeira peça eletrônica vocal. Rachel Elkind, sua produtora, sugeriu que ela fizesse uma introdução, e assim Wendy compôs “Timesteps”. Ela ainda estava no meio do processo de criação dessa música quando um amigo lhe presenteou com o livro “A Laranja Mecânica”, de Anthony Burgess. Wendy ficou impressionada com a semelhança entre o universo descrito no livro e o clima de “Timesteps”. Pouco tempo depois, o mesmo amigo lhe mandou um recorte de jornal informando que Stanley Kubrick estava transformando o livro em longa-metragem. Quando as filmagens terminaram, Rachel Elkind enviou “Timesteps” e o quarto movimento da Nona Sinfonia para Kubrick. Quando ouviu a gravação, o cineasta pediu permissão para utilizar essas duas faixas em seu filme e chamou Wendy para fazer o restante da trilha sonora.

O álbum A Clockwork Orange abre justamente com “Timesteps” seguido pelo quarto movimento em versão abreviada - ao contrário de seus álbuns anteriores, nos quais Wendy seguiu à risca a partitura das peças executadas, aqui ela fez a ousadia/heresia de alterar o que foi escrito por Beethoven. As vozes robotizadas entoando o poema “Ode à Alegria” de Schiller criam um estranhamento muito parecido com aquele provocado pelas imagens de Kubrick: um misto de horror e beleza, de futuro sombrio e humor. Além de ser um trabalho impressionante por si só, a trilha composta por Wendy Carlos é fundamental para caracterizar Alex, um psicopata de gosto refinado e um tanto quanto infantil (o que o torna ainda mais assustador).

A abertura do filme, ao som de “Music from the titles of A Clockwork Orange”, composta sobre a “Música para o Funeral da Rainha Mary”, de Henry Purcell, é de gelar a espinha (desculpe a dublagem em francês, mas não achei essa cena no original no Youtube...):



Mas a melhor faixa do disco, na minha opinião, é “Country Lane”, música que descreve a cena em que dois ex-companheiros de Alex, agora policiais, quase o afogam (no entanto, ela não entrou no filme: a cena do afogamento se passa ao som de “Music from the titles of A Clockwork Orange”). “Country Lane” é, sem dúvida, a campeã no quesito “estranhamento”: mescla alguns compassos de “La Gazza Ladra”, de Rossini (que também aparece no disco em versão abreviada e executada ao sintetizador) com o tema medieval “Dies Irae” (ao vocoder), além de som de tempestade (sim, uma tempestade criada com sintetizador) e alguns compassos de “Singing in the Rain” (canção que tem importância cabal na película).

Enfim, uma trilha sonora tão genial e indispensável quanto o filme.

Um comentário:

Rosangela disse...

Muito bom mesmo - o tema, a pauta, o texto. Vou recomendar seu blog no meu.
Abraços,
Rosangela