sábado, 7 de novembro de 2009

Clássicos do dia 7: Big Science - Laurie Anderson



Big Science, álbum de estréia da artista multimídia Laurie Anderson, foi lançado em 1982, um ano após o single O Superman alcançar o número 2 das paradas inglesas - feito inacreditável para uma música de mais de oito minutos de duração, repetitiva e monótona e na qual o canto é substituído pela fala. Big Science é uma espécie de “melhores momentos” de United States Live, performance multimídia de oito horas de duração (!) sobre a vida no hoje decadente império do norte. A seguir, apresento três visões sobre esse disco seminal:

Patti Smith através do espelho
Quando juntamos as palavras “mulher”, “poesia” e “música” é impossível não pensar em Patti Smith, a lendária poeta do punk rock nova-iorquino. Laurie Anderson, apesar de também ter a poesia como elemento central de sua obra musical e de ter construído sua carreira em Nova York, possui linguagem artística oposta. Se Alice tivesse encontrado Patti Smith do outro lado do espelho, ela teria se transformado em Laurie Anderson.
Patti Smith é intensa, apaixonada, visceral. Autora de versos como “Jesus died for somebody sins but not mine” (Gloria) e “Desire is hunger is the fire I breath/ love is a banquet on which we feed” (Because the night), Patti Smith se entrega na hora de interpretar as canções: sussurra, berra, se emociona. Já Laurie Anderson é fria e objetiva. Sobre o fim de um amor, diz apenas “I no longer love the colour of your sweaters/ I no longer love the way you hold your pens and pencils” (Sweaters). A utilização intensa do vocoder (instrumento que altera eletronicamente a voz da pessoa) dá à já monocórdica e desapaixonada voz de Anderson um timbre robótico. Nas músicas de Patti Smith, ouvimos um ser humano com todas as suas agonias, paixões e ódios. Nas de Laurie Anderson, escutamos o monólogo de uma máquina.

Patti Smith optou pelo rock: desfia sua poesia sobre uma base orgânica de baixo, guitarra e bateria. A estrutura musical é baseada em acordes e segue o desenvolvimento da narração por meio do uso da dinâmica – quase sempre resultando em um momento de clímax, geralmente no refrão. Já Laurie Anderson canta (ou melhor, recita) acompanhada de sintetizadores. A estrutura é minimalista e repetitiva: pequenas células musicais vão sendo adicionadas e subtraídas durante a canção. Não há desenvolvimento harmônico e o clímax, fraco, se configura quando o maior número de células distintas é tocado simultaneamente.

Dessa forma, Patti Smith consegue transformar um churrasco em uma cena dantesca (Summer Cannibals) enquanto Laurie Anderson faz um acidente de avião parecer um fato corriqueiro (From the air). Diferentes na linguagem, igualmente geniais.

Obra de arte além da obra de arte
Uma das coisas mais instigantes na arte é o quanto uma obra pode ir muito além daquilo que seu autor pensou quando a fez. Por exemplo: quando Picasso pintou a Guernica, queria apenas fazer um retrato cubista de uma tourada. Os animais mutilados ali pintados foram interpretados como seres humanos destroçados e o quadro acabou virando um retrato dos estragos causados pela Gerra Civil espanhola. Mais incrível ainda é quando uma obra ganha um significado diferente quando olhada sob o prisma de fenômenos que aconteceram depois da obra ter sido feita. Por exemplo: após o nazismo, o romance O Processo, de Kafka, passou a ser interpretado como uma metáfora do nascimento do Estado totalitário.

O disco Big Science faz parte do rol de obras que ganharam uma nova dimensão com o passar dos anos. Após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 (quase vinte anos depois do lançamento do disco), as músicas From the air e O Superman ganharam ares assustadoramente premonitórios – falando em 11 de setembro e em música, o verso “If I can make it there I can make it anywhere”, de New York, New York, canção imortalizada na voz de Frank Sinatra, também ganhou contornos sombrios após a queda das torres gêmeas e a ameaça do terrorismo globalizado.

Mas voltando a Laurie Anderson e às canções citadas. From the air, primeira faixa de Big Science, trata de um acidente de avião. Na verdade, é a gravação encontrada na caixa-preta de um avião que já caiu, na qual um piloto-robô avisa tranqüilamente aos passageiros que eles estão f#¨$#@&os:

good evening. this is your captain. we are about to attempt a crash landing. please extinuish all cigarettes. place your tray tables in their upright, locked position. your captain says: put you head on your knees. your captain says: put your head on your hands. captain says: put your hands on your head. put your hands on your hips. heh heh. this is your captain-and we are going down. we all going down, together. and i said: uh oh. this is gonna be some day. standby. this is the time. and this is the record of the time. this is the time. and this is the record of the time. uh-this is your captain again. you know, i've got a funny feeling i've seen this all before. why? cause i'm a caveman. why? cause i've got eyes in the back of my head. why? it's the heat. standby. this is the time. and this is the record of the time. this is the time. and this is the record of the time. put your hands over your eyes. jump out of the plane. there is no pilot. you are not alone. standby. this is the time. and this is the record of the time. this is the time. and this is the record of the time.

Atente para o verso “Cause I’m a caveman”: além de podermos fazer um paralelo fácil entre os malucos do Talebã e homens pré-históricos, acredita-se que Osama bin Laden viva até hoje escondido em alguma caverna do Afeganistão.

O Superman, épico de oito minutos que virou hit na Inglaterra, também é uma gravação. Só que, dessa vez, de mensagens deixadas em uma secretária eletrônica:

o superman. o judge. o mom and dad. mom and dad. o superman. o judge. o mom and dad. mom and dad. hi. i'm not home right now. but if you want to leave a message, just start talking at the sound og the tone. hello? this is your mother. are you there? are you coming home? hello? is anybody home? well, you don't know me, but i know you. and i've got a message to give to you. here come the planes. so you better get ready. ready to go. you can come as you are, but pay as you go. pay as you go. and i said: ok. who is this really? and the voice said: this is the hand, the hand that takes. this is the hand, the hand that takes. this is the hand, the hand that takes. here come the planes. they're american planes. made in america. smoking or non-smoking? and the voice said: neither snow nor rain nor gloom of night shall stay these couriers from the swift completion of their appointed rounds. 'cause when love is gone, there's always justice. and when justice is gone, there's always force and when force is gone, there's always mom. hi mom! so hold me, mom, in your long arms. so hold me, mom, in your long arms. in your automatic arms. your electronic arms. in your arms. so hold me, mom, in your long arms. your biochemical arms. your military arms. in your electronic arms.

A tal mãe da música pode ser interpretada como a pátria, os EUA – lembrando que Big Science nasceu a partir de uma performance sobre o país. Ela avisa que os aviões estão chegando (e são aviões americanos) e que nada irá impedir os mensageiros de completarem rapidamente sua tarefa. Levando em consideração que o principal objetivo do ataque às torres gêmeas não era matar as milhares de pessoas que estavam trabalhando lá e sim mandar uma mensagem de pânico e terror (que é, na verdade, o objetivo de qualquer ataque terrorista), a letra de O Superman também ganha contornos bem sinistros. No fim, o eu lírico pede para a mãe a segurar nos braços, em seus braços eletrônicos, automáticos, militares – que foi a resposta dos EUA aos ataques. A letra é ainda mais interessante se pensarmos que, em inglês, “arms” significa tanto “braços” como “armas”.

Mas então, seria Laurie Anderson uma espécie de Nostradamus pós-punk? Não. O disco Big Science foi feito na era Reagan, extremamente conservadora, militarista, enfim, republicana. Na faixa-título, o mote neoliberal daqueles dias é apresentado sem rodeios: “Every man for himself”. Muitos acreditaram que esse realmente era o caminho, afinal, os EUA e o capitalismo estavam no auge. Mas, ao contrário de Francis Fukuyama (autor da célebre frase de que “a História acabou”), Anderson parecia saber que o Império iria se auto-sucumbir – aliás, quem foi que armou o Talebã mesmo...?

Obs: essa ótima resenha da Pitchfork investiga a ligação entre Big Science e o 11 de setembro e serviu de inspiração para o meu texto.

Amor em tempos robóticos
Além da já citada Sweaters, as duas últimas faixas de Big Science tratam do tema do amor. Em Let x=x, o sentimento é uma possibilidade real (“you know, it could be you. it s a sky-blue sky. satellites are out tonight”), demonstrado por meio de pequenos gestos como mostrar ao outro seu canivete suíço ou deixar que o outro autografe o gesso. Por mais insignificantes que tais ações pareçam, ainda assim são trocas. Já em It tango, a comunicação se esfarelou. A letra da música é um daqueles diálogos em que parece que cada pessoa está tendo uma conversa diferente:

she said: it looks. don't you think it looks a lot like rain? he said: isn't it. isn't it just. isn't it just like a woman? she said: it's hard. it's just hard. it's just kind of hard to say. he said: isn't it. isn't it just. isn't it just like a woman? she said: it goes. that's the way it goes. it goes that way. he said: isn't it. isn't it just like a woman? she said: it takes. it takes one takes one to. it takes one to know one. he said: isn't it just like a woman? she said: she said it. she said it to no. she said it to no one. isn't it. isn't it just? isn't it just like a woman? your eyes. it's a day's work to look in to them. your eyes. it's a day's work just to look in to them.

Interessante o nome da música ser It tango. No tango, o casal se abraça, enrosca as pernas, cola o rosto de um no rosto de outro, tudo em extrema sintonia. Na música, homem e mulher parecem estar em extremos opostos da muralha da China. A própria mulher revela que é preciso um dia todo de trabalho para conseguir olhar dentro dos olhos dele.

Como Let x=x e It tango são emendadas, quase como se fossem uma mesma música, é possível interpretar que Laurie Anderson fala da impossibilidade da comunicação. Se no início ainda havia uma troca mínima, ela já não existe mais. Benvindos ao amor em tempos robóticos.

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