terça-feira, 20 de março de 2012

Entrevista com Flo Menezes

Há alguns meses, prometi publicar no blog duas entrevistas órfãs. Uma delas, com o Page Hamilton, já foi ao ar (Parte 1 e Parte 2). Agora posto a outra entrevista, com Flo Menezes, que fiz no fim de 2010 - é, a coitadinha ficou bastante tempo engavetada...



Ponto de interrogação no ouvido

Imagine um moleque de 13 anos pedindo para o pai:
- O senhor pode me matricular num curso de alemão? É que eu quero estudar música eletroacústica em Colônia depois que me formar.
Embora insólita, a cena é verídica e aconteceu com o compositor Flo Menezes. Filho de intelectual, ele teve contato com arte de vanguarda desde criança – o pai, inclusive, usava a peça Visage, de Luciano Berio, para tentar controlar o garoto levado: como a peça evoca uma mulher louca, o menino ficava com medo e se aquietava.
Hoje, Flo é um dos principais nomes brasileiros da música eletroacústica, que se diferencia radicalmente da música eletrônica pop pelo nível de complexidade das composições e por estar fora da lógica de mercado.
Além de compor e dar aulas, Flo Menezes organiza concertos, festivais e concursos e é o fundador do estúdio PANaroma e da orquestra de alto-falantes PUTS. Falante, simpático e completamente apaixonado pelo que faz, não hesita em expor seu ponto de vista, por mais controverso que seja.

Nos seus textos, há três expressões que aparecem bastante: ‘música maximalista’, ‘música especulativa’ e ‘música radical’. Você poderia explicar esses conceitos?
Vou começar por aquele que é o mais antigo, que é o ‘música especulativa’. Em 1558, Gioseffo Zarlino, um teórico muito importante e compositor da Renascença, escreveu um tratado histórico chamado Le Istitutione Harmoniche, no qual divide a música em duas esferas: a prática e a especulativa. A prática é tudo ligado à execução da música, a tocar. A especulativa é a concepção, a reflexão e a composição. Quando eu uso ‘especulativo’ no sentido da música contemporânea, estou falando de escarafunchar a linguagem, de inventar processos, elaborar estruturas mirabolantes.
O termo ‘música radical’ vem de Adorno. Ele define ‘música radical’ como aquela que vai a fundo na questão da linguagem e tenta inventar os seus meios, e não simplesmente ser condizente com situações mercadologicamente aceitas.
O termo ‘música maximalista’ é meu. Lancei em 1983, quando apresentei uma peça no Masp e a defini como maximalista. Na época, o minimalismo norte-americano era uma tendência na nova vanguarda. Era uma porcaria de música, extremamente diluída e previsível. Criava às vezes um interesse pela hipnose auditiva, de coisas que iam se transformando muito aos poucos, sem a pessoa perceber, e quando ela via estava em um outro estado. Mas era um transe quase letárgico. Tudo que eu, aos 21 anos, via de interessante na vanguarda musical se opunha àquilo. O que me interessava eram compositores que desenvolviam a linguagem por um caminho muito mais complexo, trabalhando com a simultaneidade de eventos. Então o maximalismo é toda poética que é extremamente complexa, que não dá para ser apreendida de um só golpe, mas que cria um impacto para o ouvinte, mesmo o leigo.

Uma coisa que sempre acontece comigo quando ouço música complexa é que entro naquele estado que vem antes do sono, quando vários pensamentos desconexos vêm à cabeça. E eu não estou com sono, estou acordada.
Recentemente fui a um concerto e veio me abordar um rapaz. Ele disse que estudava psicoterapia e que a tese de mestrado dele era sobre o poder terapêutico da minha música. Falei “O quê?!”, mas na realidade não foi um “o quê?!” muito surpreso. Uma das primeiras peças que eu fiz na Alemanha, PAN: Laceramento della parola (Omaggio a Trotskji), mostrei para um amigo norte-americano em uma tarde. Ele estava absolutamente acordado, com muita energia. A peça tem uma tensão inicial muito forte que vai se diluindo, o material harmônico vai de uma região super aguda, perambula pelo registro até chegar aos sons graves e então esmaece. São 7 minutos e 40 segundos. Quando ele começou a ouvir ficou tenso, daí foi relaxando aos poucos e aos 5 minutos e meio ele deu uma piscada e não abriu mais os olhos. A peça acabou e ele ficou mais uns 4 minutos assim. Ele estava acordado mas em um estado quase hipnótico. Com a maioria das peças em que você se confronta com uma complexidade que te absorve, a tendência é abstrair o tempo. E quando você abstrai o tempo você vai para uma dimensão onírica.

Dá para uma pessoa que nunca ouviu falar de música maximalista, que não sabe do que se trata, ouvir Stockhausen e absorver aquilo pelo emocional? Não teria que passar pelo racional?
A composição é particularmente bem sucedida quando cria de imediato um impacto auditivo, quando cativa o ouvinte. Mas, se você reouvir ou pensar sobre aquilo que está ouvindo, você começa a descobrir e a alterar a forma como você ouve – mas sem perder aquele interesse auditivo, sensorial, de flor da pele. Pensar a música é uma condição fundamental, não é só ouvir. A música popular de consumo veicula em um curto espaço de tempo um prazer que precisa ser assimilado. Então as canções duram três minutos e falam do mesmo assunto – porque 99% das canções são sobre amor, e quando um cara mais elaborado do que a média, como o Caetano Veloso, resolve falar de outras coisas, como o tempo, as pessoas já acham esdrúxulo. Já a música maximalista fornece uma situação de dúvida para o ouvinte, não de apaziguamento em que ele sequer pergunta o que aconteceu. O interessante é sair com um ponto de interrogação no ouvido.

Flo Menezes no estúdio em Colônia

Mesmo nomes como Kraftwerk, Wendy Carlos, Tangerine Dream estão mais próximos da dance music que toca no rádio do que da música eletroacústica?
Acho que sim. O Kraftwerk se inspirou em Stockhausen e tal, eu não conheço direito, acho que ouvi uma vez na minha adolescência, mas é um trabalho pop com timbres de sintetizador. Inclusive a música pop impulsionou o desenvolvimento e a comercialização de sintetizadores que nós (compositores eletroacústicos) acabamos usando. Mas quanto à música, são universos completamente diferentes. Wendy Carlos, que era Walter Carlos antes da operação de sexo, na realidade é um manipulador de moogs. Ele chegou a fazer um Bach com sintetizador que é interessantíssimo, mas é um arranjador. E o que se designa por música eletrônica não tem nada a ver, nada a ver (com a eletroacústica).

Essa experiência de quase transe eu só consegui ter com música complexa, mas ao mesmo tempo se tomar um fora do namorado não vou chegar em casa e ouvir o Quarteto para Helicópteros, cada uma tem uma função. Mesmo assim você acha que a música popular tira o espaço da música complexa?
Sim. No Brasil principalmente. Ela ocupa estrategicamente, politicamente, economicamente os espaços. Vou te dar um exemplo concreto: o Festival de Campos do Jordão é um festival tradicional de música clássica. Em 1994 fui chamado para dirigir o núcleo de composição do festival, que nem existia até então. Fiz um curso centrado em Olivier Messiaen, analisei a obra dele, levei os equipamentos do PANaroma, fizemos uma composição coletiva sobre Messiaen com os alunos, foi super legal. Nesse mesmo festival, pra fazer média, levaram um núcleo de música popular também. Em 95 houve uma retenção de verba, eu fui dirigir o curso de novo já não pude levar o PANaroma. Foi o núcleo de composição popular inteirinho e eu tive que dar só aulas teóricas. Em 96 a verba foi ainda menor. O que cortaram? Meu curso de composição. E o de música popular continuou. Então onde puder ela entra e toma o espaço, porque é uma música de mercado, que mexe com tiragens colossais.

Mas tirando essa parte econômica e falando mais da vida das pessoas: a gente precisa de música popular também. Você ouve música popular?
Não. Me sinto extremamente achatado, reduzido, tudo pra mim é simplório demais. Essa é a sensação que eu tenho, mais sincera possível. Vejo valor em coisas e chego a me emocionar? Sim. Um samba do morro muito bem feito por um Ismael Silva tem valor de autenticidade, de um cara que fez com meios reduzidos o culto musical possível. Nelson Cavaquinho fez canções lindas, mas o único livro que ele teve na vida foi um dicionário de português. Como você vai defender as condições de vida de um cara desses? Ele viveu em condições adversas e nesse massacre econômico ele fez aquilo que ele fez. Então é claro que tem valor, mas é um valor que se situa dentro de uma condição histórica de subjugamento econômico. Já uma coisa que vai por uma linha de diluição lidando com tecnologias e onde rola um poder econômico, um interesse de vendagem, como é com a música techno, aí eu acho um lixo, uma excrescência da sociedade.

No livro Música Maximalista você afirma que é fácil detectar o ruim em arte. Quais são os elementos de uma obra musical ruim?
Há basicamente duas formas de afrontar uma obra musical. A primeira delas é a discussão acerca da ideia, da concepção da obra. De onde partiu o mundo sonoro daquele compositor, que mergulho ele está se propondo. E aí você já pode ver se o cara está propondo coisas interessantes ou se está redundando de uma maneira diluidora coisas que já foram realizadas. E para que ocupar o tempo das pessoas com alguma coisa que um outro já fez e fez muito melhor? A arte é o terreno da liberdade e da invenção. E aí existe uma responsabilidade social, porque o compositor ocupa o tempo das pessoas, chama as pessoas para o seu rito. E você não vai querer ocupar o tempo das pessoas pra jogar merda nelas, né?
A segunda maneira é, uma vez entendida a concepção musical, ver se ela está viabilizada na realização da obra: como o compositor escreve para os instrumentos, a junção que ele faz entre os instrumentos, se o tempo que ele destina a uma ideia é suficiente para que se perceba essa ideia. Existem milhões de aspectos que são do domínio técnico, de artesanato.

Vivemos em São Paulo, com 500 sons ao mesmo tempo e, para sobreviver sem enlouquecer, temos que abstrair e fingir que não estamos ouvindo nada. Isso acaba deseducando o ouvido?
Acho que é interessante despertar nossa escuta para todo tipo de som, mas é preciso lidar com a saúde auditiva, destinar nossa escuta para os sons (e eles podem ser todos, até o do ônibus) no momento em que você quer ouvir, e saber dar valor ao silêncio. O pior não é nem esse barulho que não deixa que você ouça o silêncio do mundo, é a falta do silêncio musical. Essa é a pior poluição, porque te obriga a ouvir música em um momento em que você não tinha que ouvir música. Você tem que ouvir música como no momento em que fosse rezar. Falando nesses termos, você não vai fazer um culto toda hora, vai fazer quando está disposto espiritualmente. Receber um torpedo musical a cada rádio, no consultório, no supermercado, entorpece. Na verdade o que acontece – e isso está cada vez mais agudo na sociedade de consumo e é potencializado pela internet – é a falta de ritualização.

Muita gente diz que a música é o ramo mais incompreendido das artes contemporâneas. Por exemplo: milhares de pessoas vão à Bienal de Artes plásticas, não entendem nada, mas conseguem se relacionar com as obras e até se divertir lá dentro. E um concerto de música eletroacústica seria insuportável para a maioria. Isso acontece porque a música é realmente mais difícil de compreender ou porque não existe um evento ao qual as pessoas têm acesso, como é a Bienal de Artes Plásticas?
Não tenho a menor dúvida de que a música é a mais difícil das artes: é a que tem o maior poder de abstração ao mesmo tempo em que lida com afeto diretamente, pois é extremamente sensorial. A música é uma abstração que te toma no corpo todo. Você ouve conscientemente alguns sons e ouve inconscientemente muitos outros. A música lida com o tempo de uma maneira que nenhuma outra arte lida, porque ela é uma apologia do tempo e a grande música suprime a idéia de tempo, faz com que o ouvinte entre naquela estado de que falamos. Em uma palestra na Unicamp, disse que a música é a mais difícil das artes e deu o maior rebuliço. Porque as pessoas não falam as coisas que poderiam falar: que a música popular é bonitinha, mas é primitiva, que talvez ela se extingua se as pessoas puderem ter acesso a outras coisas. Reconheço o valor das outras artes, adoro, mas a música é uma arte superior. Stockhausen também achava e tinha coragem de dizer.

Se ficou curioso(a) e quer conhecer melhor o trabalho do Flo Menezes, há várias peças disponíveis para download no site do compositor.

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