segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Dossiê Brooklyn

Quem acompanha o cenário musical contemporâneo já deve ter se deparado com o intrigante fenômeno "bandas do Brooklyn". Minha teoria é a de que a prefeitura de Nova York colocou alguma poção mágica na água das estações que abastecem o Brooklyn - de que outra forma, em alguns anos, um mesmo BAIRRO pode originar Grizzly Bear, Dirty Projectors, Battles e TV on the Radio (só pra citar as de primeiríssimo escalão)?

Conspirações à parte, o fato é que bandas e artistas bons/ótimos existem em qualquer lugar e em qualquer época, basta fuçar bem. Só que, de vez em quando, acontece de vários artistas bons/ótimos aparecerem em um mesmo local e em uma mesma época. Foi assim com a vanguarda paulistana na São Paulo dos anos 80, a no wave na NY do fim dos 70, o grunge em Seattle no começo dos anos 90 e por aí vai. Repare que não se tratam exatamente de movimentos culturais - não há manifesto, objetivos ideológico-estéticos pré-estabelecidos nem nada disso. Simplesmente uma soma de fatores do espaço e do tempo deu origem a esses cenários. O que não impede a existência de semelhanças entre as bandas e artistas.

No caso das "bandas do Brooklyn", o que parece comum a todas elas é terem um pé no experimentalismo e outro no pop. Coisa de gente que cresceu absorvendo a influência das vanguardas novaiorquinas (punk, no wave, Velvet Underground) ao mesmo tempo em que curtia Michael Jackson e Madonna. E isso tem tudo a ver com o momento cultural atual. Se, nos anos 80, eram famosas as brigas entre punks e metaleiros, por exemplo, hoje, além dessas brigas não existirem mais, as próprias fronteiras entre as "tribos" estão diluídas. Não é de se espantar que o cara que estava batendo cabeça no show do Metallica ontem esteja hoje tocando cavaquinho numa roda de samba e amanhã dançando numa rave.

Por conseguir captar o Zeitgeist atual e também pela inegável qualidade musical é que acredito que, daqui a 15 anos pessoas farão TCCs e escreverão livros sobre as "bandas do Brooklyn" (talvez incluindo no pacote a estrangeira Animal Collective, que nasceu em Maryland, mas tem tudo a ver com o som do bairro novaiorquino).
Como diria o mestre Itamar: "Ouvidos atentos!!"

E Dossiê Brooklyn vai virar mais uma sessão fixa do blog, a ser publicada quando der na veneta.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Christian Marclay


Não entendo lhufas de hip-hop e também não sou uma grande amante do gênero, apesar de respeitá-lo imensamente. Uma das coisas que eu sempre admirei no rap é a habilidade dos DJs com as picapes, que acabam se tornando instrumentos musicais. Pois outro dia, explorando aquele blog português fodaço, fiquei sabendo que o turntablism não só nasceu fora do gênero hip-hop, como nasceu antes do hip-hop, pelas mãos do artista multimídia de Nova York Christian Marclay. Influenciado pela música concreta, John Cage, punk rock e no wave, Marclay começou a explorar o potencial dos toca-discos na virada dos anos 70 para os 80. "Eu comecei a usar discos porque eu não sabia tocar nenhum instrumento, mas queria me apresentar", ele explicou em entrevista ao Journal of Contemporary Art, explicitando a veia do it yourself do gênero que acabou criando.


Avant-garde por formação, Marclay foi ainda mais longe: utilizou os próprios discos como instrumentos musicais na performance Record Players (a incorporação não foi permitida... saco). Na série Body Mix, do comecinho dos anos 90, as "vítimas" foram capas de LPs. Ele coletou diversas capas que apelavam para a sensualidade e as rearranjou de maneira a criar um efeito de humor grotesco (o que torna Marclay também um precursor da arte do mash-up, tão em voga atualmente):


Para finalizar, um mini-documentário sobre suas várias facetas artísticas:



ps.: se algum dia um milagre acontecer e eu achar um disco dele, comentarei aqui. Rezemos.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Paulicéia Avant-garde - Nego Dito

(esse post é um excerto - com algumas modificações - de Pra quem quiser ver e comprovar - uma biografia de Itamar Assumpção, meu trabalho de conclusão de curso da faculdade de jornalismo)




Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Neg
o Dito, Nego Dito, cascavé... ecoa a vinheta repetida quase como um mantra ao longo do disco. Itamar Assumpção é o artista por trás do trabalho, mas quem canta, toca e manda seu recado é mesmo o personagem Benedito João dos Santos Silva Beleléu. Um malandro que ginga ao som da guitarra elétrica e que trocou a malemolência pela fúria: um malandro tipicamente paulistano, enfim (paulistano da Penha, Zona Leste, periferia, e não dos Jardins). Com sua navalha, esse marginal cometeu um dos maiores assaltos à MPB na década de 80 – comparável apenas ao estrago causado pelo monstro dodecafônico Clara Crocodilo.

A encrenca começa logo na primeira faixa, Luzia, com a qual Itamar/Beleléu conquistara o segundo lugar no festival de Campinas em 75. No disco, a música ganhou versos ainda mais violentos e uma introdução em que a própria Luzia desafia o malandro:

Olha aqui, Beleléu, tá limpo coisíssima nenhuma, meu, não tô mais a fim de curtir a tua e nem de ficar tomando na cara, essa de ficar na de que o Brasil não tem ponta direita, o Brasil não tem isso, o Brasil não tem aquilo, que black navalha é você Beleléu? Tá mais é parecendo chamariz de turista e isca de polícia, onde tá tua malícia meu, onde tá tua malícia...

Deixa de conversa mole Luzia
Deixa de conversa mole

Deixa de conversa mole Luzia

Deixa de conversa mole

Porque senão eu vou desconsertar a sua fisionomia

Porque senão eu vou desconsertar


Você quer harmonia mas que harmonia é essa Luzia

Só me enche o saco (só chia só chia)

Você quer harmonia mas que harmonia

Só me enche o saco (só chia só chia)

Me obriga à mais cruel solução

Desço pro porão da vil covardia, mas te meto a mão


Chega de conversa mole, Luzia

Chega de conversa mole

Eu sei que tua mãe já dizia,
é mais um
Malandro talvez ladrão
Já não chega a sogra e agora a cria,
que decepção


Você nem vai ter o prêmio de consolação

Quando eu pintar, trazer a taça de tetracampeão

E uma foto no jornal

Chega pra lá Luzia, ainda vou desfilar

Tetracampeão Luzia, porta estandarte


Chega de conversa lero, lero, lero, lero, lero, lero

Chega de conversa lero, lero, lero, lero, lero, lero


Apesar de ter pinta de bandido e de ameaçar a pobre Luzia, Beleléu se mostra um romântico. É assim em Fico Louco (“eu quero andar nas ruas da cidade agarrado contigo/ vivendo em pleno vapor, felicidade contigo”), Se eu fiz tudo (“Se eu fiz tudo que fiz foi pensando em fazer você feliz”) e Beijo na boca (“tudo que eu podia fazer eu já fiz/ na verdade você nem se toca/ ainda diz que a vida não é nada mais que um beijo na boca”). Perto da astúcia feminina, a navalha de Beleléu é uma arma de brinquedo.

A base musical na qual se desenvolve o discurso desse personagem complexo, mezzo criminoso mezzo vítima, é igualmente subversiva. Primeiro porque é uma mistura tão intrincada de reggae, rock, funk e música brasileira que é tudo e nada disso ao mesmo tempo – há ainda a dodecafônica Aranha (de autoria de Rondó e Arrigo Barnabé e letra de Neuza Pinheiro) e a seresteira Fon Fin Fan Fin Fun (de Itamar e Older Brigo) para complicar ainda mais o emaranhado de influências. Segundo porque são tantas vozes dialogando, ora em conversa ora em discussão, que algumas músicas parecem um delírio esquizofrênico. A parte instrumental é igualmente polifônica, com os instrumentos brigando ou se completando em momentos de caos e cosmos sonoros. Os ritmos quebrados e cheios de acentos em locais inusitados completam o teor de contravenção do disco.

Beleléu, Leléu, Eu tem dois pontos de referência bastante fortes: a cultura negra e a cidade de São Paulo. Afinal, em que outro contexto seria possível um Jimi Hendrix criado em ponto de terreiro, um Bob Marley que espuma de ódio?

E o disco termina em clima de "sangue nos óio" com Nego Dito, que, em ritmo de reggae, trata das peripécias do malandro Benedito João... e valeu a Itamar o terceiro lugar no Festival da Feira da Vila Madalena, em 1980:

Meu nome é
Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Eu me invoco eu brigo
Eu faço e aconteço
Eu boto pra correr
Eu mato a cobra e mostro o pau
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Tenho o sangue quente
Não uso pente meu cabelo é ruim
Fui nascido em Tietê
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Não gosto de gente
Nem transo parente
Eu fui parido assim
Apaguei um no Paraná, pá, pá, pá, pá
Meu nome é Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Quando tô de lua
Me mando pra rua pra poder arrumar
Destranco a porta a pontapé
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Se tô tiririca
Tomos umas e outras pra baratinar
Arranco o rabo do satã
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Se chamá polícia
Eu viro uma onça
Eu quero matar
A boca espuma de ódio
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Se chamá polícia
Eu vou cortar tua cara
Vou retalhá-la com navalha

ps.: quem for baixar ou comprar o disco, certifique-se de estar levando a versão original. Nela, Itamar/Beleléu apresenta a banda na penúltima faixa. Na desastrosa remixagem, que o próprio Itamar fez alguns anos depois, a apresentação foi para a primeira faixa.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Mais Glenn Branca

Duas entrevistas legais com ele:

http://media.hyperreal.org/zines/est/intervs/branca.html

http://ohomemquesabiademasiado.blogspot.com/2007/11/glenn-branca-rudo-branco.html - esse blog português, aliás, merece uma espiada: coisa fina o negócio.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Clássicos do dia 7: Glenn Branca - Devil Choirs at the Gates of Heaven



Quando John Cage ouviu pela primeira vez a peça Indeterminate Activity of Resultant Masses, escrita por Glenn Branca para uma espécie de “orquestra de guitarras elétricas”, ficou tão chocado que comentou com um amigo (durante uma conversa que estava sendo gravada): "Digamos que ele estivesse expressando boas intenções com veemência e poder, então seria como uma dessas organizações religiosas estranhas das quais ouvimos falar. Não seria? Pareceria com isso. Ou, se fosse algo politico, pareceria com o fascismo. Em nenhum dos casos, eu gostaria de fazer parte".

As palavras de Cage podem facilmente ser rotuladas como absurdas e interpretadas como a tentativa de menosprezar um novo compositor. Conflito geracional, má vontade, inveja, portanto. Mas analisemos com mais calma: antes de tudo, é preciso esclarecer que Cage não disse que Branca estava pregando a ideologia fascista por meio da música. O que ele chama de “fascismo” são dois aspectos da música de Branca.

O primeiro diz respeito à atitude de Branca como compositor. Enquanto Cage explorava o terreno da música aleatória e adorava dizer que sua obra podia ser executada por qualquer um, em qualquer lugar e a qualquer hora, Branca exige que o que ele escreveu seja seguido rigorosamente pelos músicos. Por isso, chega ao extremo de não permitir que suas obras sejam tocadas sem que ele próprio esteja presente durante todo o processo de ensaios e a apresentação em si – dessa forma, ela é apenas executada pelo Glenn Branca Ensemble. O segundo aspecto “fascista” que Cage viu na música de Branca é o efeito que ela provoca. É tanto barulho, tanto volume, tanta distorção que o ouvinte só pode tomar duas atitudes: fugir ou se submeter completamente (o equivalente musical ao slogan autoritário “Ou você está conosco ou está contra nós”).

O comentário de Cage me ajudou muito a entender a sexta sinfonia de Branca, intitulada Devil Choirs at the Gates of Heaven. Ela é considerada a obra-prima dentre as diversas composições para orquestra de guitarras, área que Branca explorou a partir de 1981 – antes disso, ele escreveu trilhas sonoras para peças de teatro e fez parte da banda no-wave Theoretical Girls.

Devil Choirs é um verdadeiro massacre sonoro. Há nela apenas momentos de caos e de ainda mais caos. Cada um de seus cinco movimentos já começa com muito barulho, uma cacofonia de guitarras distorcidas emitindo acordes complexos que se misturam em uma massa amorfa de sons bizarros, enquanto a bateria segue uma mesma e repetitiva batida. A música vai se desenvolvendo de forma orgânica (impossível identificar tema 1, tema 2), o volume fica cada vez mais alto, até atingir o clímax – e, quando ele chega, se estende até o fim do movimento (no primeiro movimento, por exemplo, o clímax deve durar uns 9 minutos). Não há um segundo de silêncio e a dinâmica só tem uma direção: cada vez mais alto, cada vez mais forte. Dizer que Devil Choirs tem testosterona em excesso é muito pouco. As músicas do Metallica têm testosterona em excesso; já a sexta sinfonia de Glenn Branca é uma demonstração de pura força.

Mas, se o ouvinte tomar a decisão de se submeter completamente ao espancamento musical proposto, encontrará a beleza em meio ao caos. Prestando bastante atenção, pode-se identificar algumas linhas instrumentais que se sobressaem no meio do barulho infernal, como ondas que se levantam e depois retornam ao mar de sons estranhos. Tomando o título da peça como um guia para sua apreciação, é possível visualizar corais de demônios aterrorizando os céus e tentando derrubar seus portões; e o clima épico do último movimento remete à luta final entre o bem e o mal.

Quando o silêncio finalmente dá as caras, encerrando a peça, o ouvinte está exausto. E aterrorizado. E maravilhado.



.