segunda-feira, 16 de julho de 2012

Especial Glenn Branca: o pseudo-piti do John Cage

A história é famosa: em 1982, Glenn Branca apresentou Indeterminate Activities of Resultant Masses no The New Music America Festival, em Chicago. Na plateia estava John Cage, que não gostou nada do que ouviu e, no dia seguinte, deu uma entrevista com duras críticas à peça. O papo foi gravado e acabou indo parar no lado B do disco com o registro de Indeterminate...

O incidente ficou conhecido como momento-em-que-Cage-teve-um-mini-ataque-histérico-e-chamou-Branca-de-fascista, mas na verdade trata-se de uma bela discussão que envolove política, comunicabilidade, zen-budismo e desejo. E a boa notícia é que você não precisa mais atravessar os 18 minutos de conversa em que Cage fala arrastado e, como era de se esperar, faz longas pausas entre uma frase e outra, para saber tudo o que foi dito na famigerada ocasião - pois, imbuída de altruísmo à lá Madre de Tereza da barulhice, transcrevi e traduzi para o português tudinho (as partes em itálico são as falas do entrevistador, Wim Mertons, e os xxxx são palavras em outras línguas ou nomes que não consegui entender).



Sabe, quando estou em casa, não ouço música. Porque passo tanto tempo compondo. Apenas escuto os sons ao meu redor, como estou ouvindo agora enquanto conversamos. Mas quando há um desses festivais, eu vou, como você deve ter notado, a todos os concertos religiosamente. É minha única oportunidade de ouvir música (riso). E gostei da maioria. Na noite passada, eu… eu não gostei da peça do Branca. Não foi porque estava muito alto – porque posso tolerar o volume alto – mas fiquei com uma opinião negativa sobre o que me pareceram ser implicações políticas. Eu não gostaria de viver em uma sociedade como aquela, em que uma pessoa exige que outras pessoas façam uma coisa tão intensa juntas. Pensei mais sobre isso hoje, mas não gostei realmente da experiência. Conforme penso sobre ela, me torno mais aberto. Não que eu abraçaria, mas ao menos não proibiria. (riso) Mas isso mostra o quão ampla e mudada está nossa noção de composição. Bem, tive uma certa dificuldade com aquilo. [A música de] Branca é um exemplo de determinação absoluta de uma pessoa a ser seguida por outras. Mesmo se não puder ouvir, você pode ver a situação. Não um pastor tomando conta das ovelhas, mas um líder insistindo para que as pessoas concordem com ele, não lhes dando nenhuma liberdade. O único sopro de ar fresco aconteceu quando a tecnologia entrou em colapso. O amplificador quebrou. Esse foi o único momento de liberdade em relação à intenção. Mas no momento que que foi reinstalado, a intenção recomeçou.

Mas qual é a diferença? Você também tem esses objetivos determinados. Mesmo que você diga que é um não-objetivo, também é uma determinação que elaborou antes de escrever a peça. Você também define seu não-objetivo como objetivo.

Esse é um mau uso da linguagem. Se você diz que um não-objetivo é um objetivo, então você está usando a linguagem para anular a linguagem, para anular a mente. Se você não pode dizer “não-objetivo” e isso significar “não-objetivo” em vez de “objetivo”, então a linguagem não tem nenhum uso. Minha atitude em relação à vida é diferente da que ele expressa. Não é a mesma. Mas ambos podemos viver. Não acho que a imagem de poder e intenção e determinação faria uma sociedade na qual eu gostaria de continuar a viver. Mas você gostou, então eu queria ouvir mais o que aquilo tem de bom. Digamos que ele estivesse expressando boas intenções com veemência e poder, então seria como uma dessas organizações religiosas estranhas das quais ouvimos falar. Não seria? Pareceria com isso. Ou, se fosse algo politico, pareceria com o fascismo. Em nenhum dos casos, eu gostaria de fazer parte. Prefiro muito mais o pensamento de Thoureau, de anarquia, de liberdade em relação a uma intenção assim. É como eu sinto. E não acho que de forma alguma Branca esteja um passo à frente de nada. (riso) Ele pode ser popular agora, mas popularidade não é nada, porque o que é popular hoje não é amanhã. Todas essas coisas mudam, nada é mais instável do que a popularidade.

Mas essa música nunca vai ser popular.

Não vai? Mas no programa está escrito que é popular, que ele é uma estrela e muito bem sucedido.

Ele é menos bem sucedido do que você.

Não sei o que isso significa, não sei o quão bem sucedido eu sou. O que estou fazendo agora é tentando achar uma nova peça para compor, e até agora não fui bem sucedido. (riso) A música que ele tocou na noite passada não era escrita.

Sim.

Ninguém estava lendo.

Sim, todos tinham estantes com partituras.

Não vi.

Todos tinham uma estante. É música escrita.

Verdade?

Sim.

Não vi nenhuma partitura... tenho que perguntar para outras pessoas, mas devo dizer que não vi. A música atual do David Tudor tem que ter o David Tudor, senão é impossível de ser tocada. E acho que com o Branca é a mesma coisa: tem que ter o Branca. [A música da] Laurie Anderson tem que ter a Laurie Anderson. Minha música é diferente, eu não preciso estar presente.

Houve um tempo em que os compositores também queria ficar o mais próximo possível de sua própria música.

Como os trovadores da Idade Média. É com eles que essas pessoas se parecem. É uma volta à Idade Média, mas com o uso da tecnologia moderna. Na verdade, é a tecnologia moderna o que o torna xxxxx (palavra em francês), porque eles fazem circuitos e tal, dos quais se tornam dependentes. E se os circuitos não funcionam, a música desmorona. É muito diferente de uma música que pode ser usada por um estranho, uma pessoa que você não conhece. Pelo menos você corta o cordão umbilical. (riso) Há um comentário muito bonito feito pela Margaret xxx, você a conhece de nome?

Sim.

Eu a conhecia, e ela disse que agora que vivemos mais do que antes, não há motivo para continuarmos a fazer as mesmas coisas sempre. Podemos mudar mais do que achávamos apropriado antes. Eu tento sempre achar algo novo.

A ideia de novidade é...

Me interessa, sim. E se você disser que sempre querer algo novo é a mesma coisa sempre, então novamente você não está usando a linguagem corretamente. (riso)

Você está um passo na minha frente agora.

Mas você não estava indo para lá?

Não vou te contar. (risos)

No mínimo, você abriu a porta em direção a essa ideia. Agora você pode me dizer o que te interessa naquilo [peça do Branca]?

Tem a ver com não-comunicação.

Apenas ser? Ser alguma coisa, fazer algum som e não dizer nada?

(barulho significando sim)

Mas por que a insistência?

É como um grito.

Está indo contra o ambiente ao redor? É um grito sobre algo ou não?

Não, acho que não.

É só um grito?

Sim. É sem esperança.

Sem esperança? Você quer dizer, porque é um fim em si mesmo?

Sim. É sobre energias, é uma acumulação de energias sem conteúdo, sem dialética, sem comunicação, sem feedback. É muito libidinoso.

O que isso quer dizer? Cheio de desejo?

Sim.

Então é dialético, porque o desejo é por algo além de si mesmo. É erótico?

Diria que sim.

Mas sem relação com nada amado, só em relação a si mesmo?

Provavelmente.

Então é puramente narcisista.

Sim.

Então para que serve?

Provavelmente, é inútil.

Então como você pode gostar se é inútil? Ou como você pode utilizá-lo se é inútil? (riso) Eu acho aterrorizante, mas você não. Meus joelhos estavam fracos ontem à noite depois daquela experiência. Eu não conseguia levantar, ao mesmo tempo em que não queria ficar sentado. É como o reflexo da luz do sol em um prédio ou algo assim. Quero dizer, quando o sol está bem forte e ele bate no seu olho depois de bater em um prédio em um determinado ângulo e você vê uma luz brilhante vindo em sua direção, algo assim.

Você estava falando sobre a diferença entre usar a força e a inteligência na música.

Sim. E a relação com o século 21. Se seguirmos o exemplo do Branca, duvido que chegaríamos a esse século, porque não há sugestão de inteligência, apenas força e energia. Por esses meios, é mais fácil nos aniquilarmos antes de chegar ao século 21. E é mais ou menos o que estamos fazendo, na verdade. Não nós, mas as nações. Acho que precisamos fazer um uso mais calmo das nossas faculdades. Uma das coisas que eu mais desgosto na música europeia é a presença de clímaxes. E o que vejo em Branca, assim como em Wagner, é um clímax sustentado. Também sugere que o que não é clímax não é excitante. Para mim, um dos ensinamentos mais importantes do zen budismo é “todo dia é um belo dia”. Poder mover a atenção de um ponto a outro sem ter a impressão de deixar algo importante para trás é uma sensação que gosto de ter e que espero poder passar aos outros. Assim cada um pode colocar sua atenção de modo original, e não de uma forma forçada ou persuadida. Assim cada pessoa toma conta de si mesma.



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domingo, 15 de julho de 2012

Especial Glenn Branca: o começo de tudo isso


"Então decidimos empurrar a música em direção aos compositores de que gostávamos, como Stockhausen. Eles todos estavam escrevendo música que era tão extrema quanto heavy metal, mas sem usar guitarras. Conforme íamos nessa direção, quanto mais nos afastávamos do centro, mais sucesso a banda fazia. In 1979, levei isso para fora da banda e escrevi uma peça instrumental para seis guitarras e esse foi realmente o começo de tudo isso" (Glenn Branca)

Essa primeira composição a que ele se refere é "Instrumental for six guitars", que foi apresentada ao vivo pela primeira vez em 1979, mas nunca chegou a ser registrada em disco. Logo depois vieram várias outras, como "Lesson n. 1" e "The Ascension", lançadas respectivamente em 1980 e 1981:





Além de ser um passo importante na construção da linguagem musical de Branca, colocando em foco a guitarra e suas diversas possibilidades de afinação e de variação dinâmica (o que levaria à composição das famosas sinfonias), essas primeiras peças foram essenciais para a criação da ensemble pela qual passaram nomes como Thurston Moore, Lee Ranaldo e Page Hamilton.

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sexta-feira, 13 de julho de 2012

440 Hz Anti-Especial: Por que não vou comemorar o Dia do Rock

Sejamos francos: tá difícil gostar de rock. Não porque "as bandas de hoje não tocam mais como o Deep Purple" ou outra frase nostálgico-reaça do tipo, mas porque o rock parece se tornar cada vez mais um ímã de gente classista, racista e misógina. Como bem colocou Bernardo Pacheco, guitarrista do Elma, em entrevista ao Intervalo Banger: "misto bizarro de preconceito de classe e surdez seletiva que alguns chamam de “rockismo” no Brasil".

Os mesmos argumentos usados pelos fanáticos religiosos que condenavam o rebolado de Elvis Presley nos anos 50, que quebraram LPs dos Beatles em público nos 60 ou que tentaram proibir o metal nos 80 são, em pleno 2012, repetidos à exaustão nas redes sociais para atacar gêneros como sertanejo, funk, pagode e axé - o fato de boa parte desses estilos musicais ter um pé na África e ser apreciado principalmente pelas classes C, D e E não é mera coincidência.

Fora a mania de ligar o gosto por tais gêneros à ignorância e a um atraso cultural, como se o rockão à lá AC/DC fosse o último bastião da intelectualidade. Em um dos gritos indignados em forma de montagem tosca de Photoshop, a letra de "Ai, se eu te pego" é comparada com a versão traduzida de "Civil War", do Guns'n'Roses (é, Guns'n'Roses...), tendo acima a pergunta "E você ainda pergunta porquê (é, junto e com acento circunflexo...) eu prefiro rock?".

É nessas horas que eu prefiro ouvir isso aqui:





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terça-feira, 10 de julho de 2012

Especial Glenn Branca: The Static

Com a morte precoce do Theoretical Girls, Branca montou a banda The Static com a artista visual e então namorada Barbara Ess. Como o antigo grupo, o The Static também durou pouco e só gravou um single (a música My Relationship, lado A, foi incluída na coletânea New York Noise vol.2, que também traz Sonic Youth e Rhys Chatham, entre vários outros):





Segundo a biografia que consta no site oficial do moço, foi no The Static que Branca inaugurou o sistema de afinação da guitarra em três oitavas - mas nada se explica sobre o tal sistema...


Já sabe, né? Também dá pra acompanhar o blog pelo Facebook (como a interface maviosa do Blogspot não me permitiu colocar um like box, tenho que botar essa mensagem em todo post. Paciência...)



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quinta-feira, 5 de julho de 2012

Especial Glenn Branca: Theoretical Girls

Começando do começo, a primeira banda de mr. Branca, montada em Nova York no fim dos anos 70:



Como quase todos os outros grupos da no wave, o Theoretical Girls nunca gravou um álbum propriamente dito e acabou de fora da compilação No New York, organizada por Brian Eno. Além da falta de registros fonográficos, a primeira banda de Branca compartilha com os outros nomes da cena o fato de ter começado a fazer música quase aleatoriamente - Branca conta, no documentário Kill Your Idols, que ele e Jeff Lohn queriam montar uma companhia de teatro e decidiram, do nada, formar uma banda em vez da trupe.

Provavelmente foi essa mistura de amadorismo naïve e necessidade feroz de se expressar que moldou a cara dessa curta porém intensa cena musical. Mas ali foi só o começo para Branca, que iria fazer coisas muito mais interessantes e revolucionar a guitarra elétrica nos anos seguintes...

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quarta-feira, 4 de julho de 2012

4 anos de Destruindo Pianos


Hoje este humilde blog completa quatro anos de vida. Não preparei nenhum especial de aniversário porque só me dei conta disso ontem - ô ano pra passar voando, putaqueopariu.

Quando comecei o blog, minha ideia era falar sobre música feita a partir de barulhos, terreno que eu estava (e ainda estou) tateando. No início, era mais voltado pro rock, mas com o passar do tempo, outros interesses musicais se somaram, mais notadamente a improvisação livre e a face mais experimental do metal.

Mas sempre mantive a coisa da descoberta - em vez de tom professoral, um clima de conversa entre amigos trocando informações sobre as coisas que andam ouvindo. E justamente por isso, cada comentário postado aqui (seja elogiando o blog, seja dando dicas, seja compartilhando mais informações sobre determinado assunto) é muito importante pra mim.

Esse é um blog feito por e para quem ama música, aquelas pessoas que gostam de botar um disco para tocar e ouvir de olhos fechados, prestando atenção única e exclusivamente na trajetória dos sons. Aquelas pessoas que amam tanto a música que topam ser arrebatados, encantados, extasiados, aterrorizados e até torturados por ela - o "prazer primordial percebido inclusive na dor" que Nietzsche apontava como matriz comum da música e do mito trágico.

Quem venham mais dores assim. Que venham mais anos de Destruindo Pianos.

ps: já curtiu a fanpage do blog no Facebook?



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terça-feira, 3 de julho de 2012

Especial Glenn Branca - entrevista para The Drone

O mestre da guitarra noise está com dois shows agendados em São Paulo (24 e 25 de julho no SESC Belenzinho), então resolvi fazer um especial aqui no blog no estilo Mês John Zorn.

Para começar, uma entrevista sucinta, mas bastante reveladora sobre as ideias de Branca, gravada no ano passado:



Falando em especiais, o Free Form Free Jazz prometeu um sobre o Peter Brötzmann, que por sinal também vai se apresentar no Brasil neste mês.

E acompanhe Destruindo Pianos pelo Facebook para ficar por dentro do que acontece de arrado no mundo da música.



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