segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Paulicéia Avant-garde - Nego Dito

(esse post é um excerto - com algumas modificações - de Pra quem quiser ver e comprovar - uma biografia de Itamar Assumpção, meu trabalho de conclusão de curso da faculdade de jornalismo)




Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Neg
o Dito, Nego Dito, cascavé... ecoa a vinheta repetida quase como um mantra ao longo do disco. Itamar Assumpção é o artista por trás do trabalho, mas quem canta, toca e manda seu recado é mesmo o personagem Benedito João dos Santos Silva Beleléu. Um malandro que ginga ao som da guitarra elétrica e que trocou a malemolência pela fúria: um malandro tipicamente paulistano, enfim (paulistano da Penha, Zona Leste, periferia, e não dos Jardins). Com sua navalha, esse marginal cometeu um dos maiores assaltos à MPB na década de 80 – comparável apenas ao estrago causado pelo monstro dodecafônico Clara Crocodilo.

A encrenca começa logo na primeira faixa, Luzia, com a qual Itamar/Beleléu conquistara o segundo lugar no festival de Campinas em 75. No disco, a música ganhou versos ainda mais violentos e uma introdução em que a própria Luzia desafia o malandro:

Olha aqui, Beleléu, tá limpo coisíssima nenhuma, meu, não tô mais a fim de curtir a tua e nem de ficar tomando na cara, essa de ficar na de que o Brasil não tem ponta direita, o Brasil não tem isso, o Brasil não tem aquilo, que black navalha é você Beleléu? Tá mais é parecendo chamariz de turista e isca de polícia, onde tá tua malícia meu, onde tá tua malícia...

Deixa de conversa mole Luzia
Deixa de conversa mole

Deixa de conversa mole Luzia

Deixa de conversa mole

Porque senão eu vou desconsertar a sua fisionomia

Porque senão eu vou desconsertar


Você quer harmonia mas que harmonia é essa Luzia

Só me enche o saco (só chia só chia)

Você quer harmonia mas que harmonia

Só me enche o saco (só chia só chia)

Me obriga à mais cruel solução

Desço pro porão da vil covardia, mas te meto a mão


Chega de conversa mole, Luzia

Chega de conversa mole

Eu sei que tua mãe já dizia,
é mais um
Malandro talvez ladrão
Já não chega a sogra e agora a cria,
que decepção


Você nem vai ter o prêmio de consolação

Quando eu pintar, trazer a taça de tetracampeão

E uma foto no jornal

Chega pra lá Luzia, ainda vou desfilar

Tetracampeão Luzia, porta estandarte


Chega de conversa lero, lero, lero, lero, lero, lero

Chega de conversa lero, lero, lero, lero, lero, lero


Apesar de ter pinta de bandido e de ameaçar a pobre Luzia, Beleléu se mostra um romântico. É assim em Fico Louco (“eu quero andar nas ruas da cidade agarrado contigo/ vivendo em pleno vapor, felicidade contigo”), Se eu fiz tudo (“Se eu fiz tudo que fiz foi pensando em fazer você feliz”) e Beijo na boca (“tudo que eu podia fazer eu já fiz/ na verdade você nem se toca/ ainda diz que a vida não é nada mais que um beijo na boca”). Perto da astúcia feminina, a navalha de Beleléu é uma arma de brinquedo.

A base musical na qual se desenvolve o discurso desse personagem complexo, mezzo criminoso mezzo vítima, é igualmente subversiva. Primeiro porque é uma mistura tão intrincada de reggae, rock, funk e música brasileira que é tudo e nada disso ao mesmo tempo – há ainda a dodecafônica Aranha (de autoria de Rondó e Arrigo Barnabé e letra de Neuza Pinheiro) e a seresteira Fon Fin Fan Fin Fun (de Itamar e Older Brigo) para complicar ainda mais o emaranhado de influências. Segundo porque são tantas vozes dialogando, ora em conversa ora em discussão, que algumas músicas parecem um delírio esquizofrênico. A parte instrumental é igualmente polifônica, com os instrumentos brigando ou se completando em momentos de caos e cosmos sonoros. Os ritmos quebrados e cheios de acentos em locais inusitados completam o teor de contravenção do disco.

Beleléu, Leléu, Eu tem dois pontos de referência bastante fortes: a cultura negra e a cidade de São Paulo. Afinal, em que outro contexto seria possível um Jimi Hendrix criado em ponto de terreiro, um Bob Marley que espuma de ódio?

E o disco termina em clima de "sangue nos óio" com Nego Dito, que, em ritmo de reggae, trata das peripécias do malandro Benedito João... e valeu a Itamar o terceiro lugar no Festival da Feira da Vila Madalena, em 1980:

Meu nome é
Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Eu me invoco eu brigo
Eu faço e aconteço
Eu boto pra correr
Eu mato a cobra e mostro o pau
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Tenho o sangue quente
Não uso pente meu cabelo é ruim
Fui nascido em Tietê
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Não gosto de gente
Nem transo parente
Eu fui parido assim
Apaguei um no Paraná, pá, pá, pá, pá
Meu nome é Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Quando tô de lua
Me mando pra rua pra poder arrumar
Destranco a porta a pontapé
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Se tô tiririca
Tomos umas e outras pra baratinar
Arranco o rabo do satã
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Se chamá polícia
Eu viro uma onça
Eu quero matar
A boca espuma de ódio
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé

Se chamá polícia
Eu vou cortar tua cara
Vou retalhá-la com navalha

ps.: quem for baixar ou comprar o disco, certifique-se de estar levando a versão original. Nela, Itamar/Beleléu apresenta a banda na penúltima faixa. Na desastrosa remixagem, que o próprio Itamar fez alguns anos depois, a apresentação foi para a primeira faixa.

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