(esse post é um excerto - com algumas modificações - de Pra quem quiser ver e comprovar - uma biografia de Itamar Assumpção, meu trabalho de conclusão de curso da faculdade de jornalismo)
Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, Nego Dito, cascavé... ecoa a vinheta repetida quase como um mantra ao longo do disco. Itamar Assumpção é o artista por trás do trabalho, mas quem canta, toca e manda seu recado é mesmo o personagem Benedito João dos Santos Silva Beleléu. Um malandro que ginga ao som da guitarra elétrica e que trocou a malemolência pela fúria: um malandro tipicamente paulistano, enfim (paulistano da Penha, Zona Leste, periferia, e não dos Jardins). Com sua navalha, esse marginal cometeu um dos maiores assaltos à MPB na década de 80 – comparável apenas ao estrago causado pelo monstro dodecafônico Clara Crocodilo.
A encrenca começa logo na primeira faixa, Luzia, com a qual Itamar/Beleléu conquistara o segundo lugar no festival de Campinas em 75. No disco, a música ganhou versos ainda mais violentos e uma introdução em que a própria Luzia desafia o malandro:
Olha aqui, Beleléu, tá limpo coisíssima nenhuma, meu, não tô mais a fim de curtir a tua e nem de ficar tomando na cara, essa de ficar na de que o Brasil não tem ponta direita, o Brasil não tem isso, o Brasil não tem aquilo, que black navalha é você Beleléu? Tá mais é parecendo chamariz de turista e isca de polícia, onde tá tua malícia meu, onde tá tua malícia...
Deixa de conversa mole Luzia
Deixa de conversa mole
Deixa de conversa mole Luzia
Deixa de conversa mole
Porque senão eu vou desconsertar a sua fisionomia
Porque senão eu vou desconsertar
Você quer harmonia mas que harmonia é essa Luzia
Só me enche o saco (só chia só chia)
Você quer harmonia mas que harmonia
Só me enche o saco (só chia só chia)
Me obriga à mais cruel solução
Desço pro porão da vil covardia, mas te meto a mão
Chega de conversa mole, Luzia
Chega de conversa mole
Eu sei que tua mãe já dizia,
é mais um Malandro talvez ladrão
Já não chega a sogra e agora a cria,
que decepção
Você nem vai ter o prêmio de consolação
Quando eu pintar, trazer a taça de tetracampeão
E uma foto no jornal
Chega pra lá Luzia, ainda vou desfilar
Tetracampeão Luzia, porta estandarte
Chega de conversa lero, lero, lero, lero, lero, lero
Chega de conversa lero, lero, lero, lero, lero, lero
Apesar de ter pinta de bandido e de ameaçar a pobre Luzia, Beleléu se mostra um romântico. É assim em Fico Louco (“eu quero andar nas ruas da cidade agarrado contigo/ vivendo em pleno vapor, felicidade contigo”), Se eu fiz tudo (“Se eu fiz tudo que fiz foi pensando em fazer você feliz”) e Beijo na boca (“tudo que eu podia fazer eu já fiz/ na verdade você nem se toca/ ainda diz que a vida não é nada mais que um beijo na boca”). Perto da astúcia feminina, a navalha de Beleléu é uma arma de brinquedo.
A base musical na qual se desenvolve o discurso desse personagem complexo, mezzo criminoso mezzo vítima, é igualmente subversiva. Primeiro porque é uma mistura tão intrincada de reggae, rock, funk e música brasileira que é tudo e nada disso ao mesmo tempo – há ainda a dodecafônica Aranha (de autoria de Rondó e Arrigo Barnabé e letra de Neuza Pinheiro) e a seresteira Fon Fin Fan Fin Fun (de Itamar e Older Brigo) para complicar ainda mais o emaranhado de influências. Segundo porque são tantas vozes dialogando, ora em conversa ora em discussão, que algumas músicas parecem um delírio esquizofrênico. A parte instrumental é igualmente polifônica, com os instrumentos brigando ou se completando em momentos de caos e cosmos sonoros. Os ritmos quebrados e cheios de acentos em locais inusitados completam o teor de contravenção do disco.
Beleléu, Leléu, Eu tem dois pontos de referência bastante fortes: a cultura negra e a cidade de São Paulo. Afinal, em que outro contexto seria possível um Jimi Hendrix criado em ponto de terreiro, um Bob Marley que espuma de ódio?
E o disco termina em clima de "sangue nos óio" com Nego Dito, que, em ritmo de reggae, trata das peripécias do malandro Benedito João... e valeu a Itamar o terceiro lugar no Festival da Feira da Vila Madalena, em 1980:
Meu nome é
Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé
Eu me invoco eu brigo
Eu faço e aconteço
Eu boto pra correr
Eu mato a cobra e mostro o pau
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé
Tenho o sangue quente
Não uso pente meu cabelo é ruim
Fui nascido em Tietê
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé
Não gosto de gente
Nem transo parente
Eu fui parido assim
Apaguei um no Paraná, pá, pá, pá, pá
Meu nome é Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé
Quando tô de lua
Me mando pra rua pra poder arrumar
Destranco a porta a pontapé
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé
Se tô tiririca
Tomos umas e outras pra baratinar
Arranco o rabo do satã
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé
Se chamá polícia
Eu viro uma onça
Eu quero matar
A boca espuma de ódio
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé
Se chamá polícia
Eu vou cortar tua cara
Vou retalhá-la com navalha
ps.: quem for baixar ou comprar o disco, certifique-se de estar levando a versão original. Nela, Itamar/Beleléu apresenta a banda na penúltima faixa. Na desastrosa remixagem, que o próprio Itamar fez alguns anos depois, a apresentação foi para a primeira faixa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário