Pra começar 2012 de um jeito bacanudo, aqui vai a primeira das entrevistas órfãs que fiquei de publicar no blog. Chamei essa entrevista de "entrevista amaldiçoada", porque tudo parecia dar errado. Cronologia dos perrengues:
- um dos produtores do show que o Helmet fez em São Paulo em julho é amigo do Gonzo, editor da Soma, e perguntou se não rolava uma matéria na revista. Aí o Gonzo entrou em contato comigo perguntando se eu não tava a fim de fazer a entrevista e eu disse que sim, claro. Imaginei que já estava tudo certo, só iriam me passar as coordenadas de onde e quando, eu iria lá, conversaria com o cara e sairia a matéria linda na revista. Aí quando chegou na semana do show, eis que o Gonzo não conseguia de jeito nenhum entrar em contato com o tal produtor, que, depois descobrimos, tinha ido pescar no Pantanal (!) e estava incomunicável.
- chegou o dia do show, bateu aquele desespero em todo mundo, "meo deos como vamos fazer???" e o que consegui foi o contato do Samuel, que faria uns vídeos do show (são esses aí que aparecem ao longo da entrevista). Liguei pra ele, garanti meu passe para a passagem de som e aí falaria com o Page Hamilton - saberia que não daria pra fazer uma entrevistona bacana ali na correria, mas daria pra pegar email e aí combinar um papo via Skype.
- Peguei o email do moço, entrei em contato e marcamos uma entrevista por Skype em uma semana em que ele estaria na casa dos pais em Oregon, meio que de férias. Parecia lindo. Só que a conexão estava uma merda e a entrevista teve que ser abortada depois de dez minutos. Aí combinamos de fazer por telefone alguns dias depois. Aí o celular dele estava uma merda e de novo a entrevista foi pro saco. Combinamos de fazer de novo via Skype, quando ele estivesse de volta à casa dele, onde tem uma conexão melhor e tal.
- Nessas a revista já estava fechando e eis que Bernardo Pacheco, do Elma, entrou em contato com o Mateus, editor da Soma, dizendo que tinha feito uma entrevista com o Page Hamilton e perguntou se ele não queria publicar na revista. Como não havia previsão de sair a minha e a revista não pode atrasar, o Mateus acabou optando pela entrevista feita pelo Bernardo - que, aliás, ficou bem legal, saca só.
- Como eu ainda queria falar com o Page e achei que seria, como diria a Sandra Annenberg, muito deselegante descombinar o papo, expliquei a situação e ele, que é o cara mais gente boa do mundo, topou em falar comigo mesmo que o resultado só fosse publicado no meu humilde blógui. E aí, bom... aqui vai a primeira parte do resultado!
Quando você foi pra Nova York, queria estudar jazz. Que tipo de jazz você curtia: free jazz ou mais tradicional?
Quando comecei a escola – em Oregon, primeiro, na University of Oregon – comecei a curtir guitar jazz: George Benson, Grant Green. E depois jazz modal, como Kind of Blue, do Miles Davis. E aí comecei a ouvir Coltrane, o que foi muito inspirador. Daí fui conhecendo coisas mais antigas, bebop dos anos 40 e 50. Então meu período favorito no jazz é entre os anos 40 e 60. Gosto de standards. Trabalho em standards o tempo todo. Também amo Wayne Shorter, ele tem umas mudanças de acordes interessantes. Free jazz também me interessa, ouço o Coltrane de 66 e 67 e também o disco Free Jazz, do Ornette Coleman. Mas eu gosto de harmonia, e free jazz, como o nome já diz, é livre harmonicamente, não há mudanças de acordes. Não dá pra realmente estudar free jazz. Se você for a uma instituição, provavelmente você vai aprender sobre mudanças de acordes e tal. Então estudei composição: escrevi uma peça para big band, um octeto para metais, uma canção baseada num poema e alguns temas originais de jazz, que toquei no meu recital de formatura.
Em que instituição você estudou?
Manhattan School of Music.
Na época em que você foi para Nova York já era um fã de rock e metal ou só gostava de jazz?
Cresci no rock. Toco guitarra por causa do Led Zeppelin. Então gosto de heavy, hard rock. Sempre gostei de música pesada, agressiva. Pra mim, Coltrane é bem pesado, agressivo, assim como Charlie Parker. Músicos não devem se prender a gêneros musicais, na minha opinião. Quando alguém me diz “Odeio jazz”, eu reviro os olhos. Se for um músico, está perdendo uma das maiores formas de arte já criadas. É o mesmo quando alguém diz que odeia música pesada, metal. Só digo: “Problema seu”. Gosto de tudo, não me identifico com um estilo.
Você chegou a NY no começo dos anos 80, certo?
1985. Me mudei pra NY com 600 dólares no bolso. Trabalhei como segurança no Welfare Hotel, onde eu morava. Não conseguia nem pagar o aluguel. Estava devendo 6 meses e o dono veio dizer: “Ei, seu aluguel está atrasado”. Eu disse: “Você é meu chefe, é você quem me paga. Mal consigo comer, como posso pagar o aluguel?”. Então arrumei um bom emprego de motorista de van, fazendo entrega de learning antiques, que são umas revistas de educação continuada para adultos. Eu as entregava 4 dias por semana. Ganhei um bom dinheiro com isso e pude sair do vermelho.
Como você foi tocar com o Glenn Branca?
Vi um anúncio no Village Voice – também foi assim que eu entrei pro Band of Susans. Não sabia do que se tratava. Tive uma audição, só eu e Glenn no escritório dele, ele tinha um monte de livros e tal. Ele me deu alguns ritmos para tocar com uma guitarra em open tune (sistema em que todas as cordas da guitarra são afinadas em uma mesma nota). Ele também pegou uma guitarra e tocamos juntos. Adorei. E ele me contratou. Com o Glenn não é uma gig fixa, em que você só toca com ele, porque ele faz só uns seis shows por anos. Foi assim: ensaiamos para alguns shows na Itália e na França, paramos por alguns meses e então ensaiamos de novo para a gravação (da sinfonia Devil’s Choirs at the Gates of Heaven).
Gostaria de falar sobre algumas técnicas ou ideias que você aprendeu com ele e depois usou no Helmet ou em outros projetos.
Acho que a principal coisa foram as figuras rítmicas do Glenn e a sobreposição de coisas como guitarras em 5/4 e bateria em 4/4. Isso ficou comigo. Também absorvi o open tuning. No caso do Glenn, as guitarras são afinadas em E e B. Ele dividia as guitarras em seções: soprano, contralto, tenor, barítono e baixo. É quase como um coro, um coro de guitarras. A soprano, por ser mais aguda, tinha cordas de expessura mais fina, que têm um som mais brilhante. Muito interessante. No Helmet, não usamos open tuning, mas acho que aquele som permaneceu comigo. A maneira como ele sobrepõe acordes e cria esses harmônicos interessantes na upper part of the chords. Qualquer nota tem uma série harmônica e quando você adiciona distorção e outras notas, você tem essa parede sonora interessante.
Antes do Helmet, você tocou no Band of Susans. Há umas guitarras muito boas naquele disco Love Agenda. Eram 3 guitarras, certo?
Sim. Com três guitarras é obviamente menos cabeludo e complexo do que o grupo do Glenn, que tinha nove guitarras, acho, na época em que gravamos a Sinfonia nº 6. O Robert pegava acordes bem simples e os contrapunha a outros acordes. Era lindo. Foi ele quem me fez começar a experimentar com distorção.
helmet: role model / so long / ironhead from de casa on Vimeo.
Como o Helmet nasceu?
Eu estava compondo e tinha esperança de que algumas dessas músicas entrassem no disco (Love Agenda), mas o Robert achou que não eram apropriadas pro Band of Susans. Foi por isso que saí. Eu amava a banda, era ótima, mas eu queria compor. Então decidi formar minha própria banda. Depois de excursionar com o Band of Susans, acho que perdi meu emprego, então arrumei um emprego em uma revista chamada Rock Pool. Eu cuidava da correspondência e escrevia entrevistas usando um nome falso. Conheci uma amiga, ela me achou realmente talentoso e então pagou um anúncio no Village Voice para mim. Foi assim que conheci John Stanier (baterista). Ela era casada com um australiano, Peter Mengede (guitarrista), ele entrou na banda e fizemos audições para baixista. Coloquei um anúncio no Village Voice de novo. Acho que 13 baixistas apareceram na audição. Henry (Bogdan) era fantástico.
Isso foi em 88, 89?
89.
Sei que quando as pessoas formam uma banda elas não sentam e ficam horas pensando em como querem que o som seja, mas acredito que haja coisas que queiram explorar, e outras que não queiram. Como foi isso com o Helmet?
Eu ouvia muitas coisas e voltei ao rock depois de anos longe, estudando e tocando jazz e violão clássico. Comecei a ouvir rock no fim dos anos 70, começo dos 80, e gostava de Killing Joke, Wire, Gang of Four e bandas punk como Buzzcocks e Undertones. Eu realmente queria fazer alguma coisa com vocais e guitarras agressivos. Eu estava compondo, meio usando coisas do Glenn Branca, do Band of Susans e da minha bagagem de jazz. Escrevi o que me veio naturalmente. O drop tuning me ocorreu em uma noite, quando voltava pra casa. Me veio um riff à cabeça para a música Repetition, do Strap it on. Então cheguei em casa, peguei a guitarra e tive que mudar a afinação para achar as notas. Afinei a corda mi grave um tom abaixo, em ré. Isso me libertou e me abriu para todo esse mundo que não tinha explorado antes, e foi assim que o vocabulário do Helmet começou. Hoje tocamos em drop C. Mas naquela época, toda a guitarra estava na afinação tradicional, exceto a corda mais grave, que estava um tom abaixo. Agora, usamos essa afinação e depois abaixamos um tom da guitarra toda (fica assim: d – a – f – c – g – C). Gosto mais desse som.
Tenho uma impressão sobre o Helmet: que as coisas realmente loucas acontecem principalmente nos solos de guitarra. Ruído eu só consigo ouvir nos solos.
Estava conversando outro dia sobre isso e a pessoa me disse que talvez o fato de eu ouvir muitos saxofonistas tenha influenciado isso, porque eu estou sempre tentando tirar frases de saxofone da guitarra. John Coltrane é um dos meus heróis, assim como Charlie Parker e Wayne Shorter. E isso se transformou nesse estilo meu.
Os solos de guitarra são bem importantes na música do Helmet, mas hoje em dia a maioria das pessoas – com exceção dos guitarristas – parecem estar meio cheias disso. Solos de guitarra não são tão populares como eram nos anos 70, por exemplo.
Não me preocupo com isso, porque eu amo solos de guitarra. Gosto da excitação que eles criam e das mudanças de seção que você pode fazer com eles.
helmet: i know / wilma's rainbow / milquetoast from de casa on Vimeo.
Voltando no tempo, no começo dos anos 90, algumas pessoas compararam o Helmet à cena de Seattle. Você vê coisas em comum ou isso é asneira de jornalista?
Acho que é asneira de jornalista. Pela banda ter se formado na mesma época as pessoas fazem essas comparações. Mas eu e o baixista, Henry, somos do Noroeste, de Oregon. Saímos de lá e fomos correr atrás de nossas carreiras musicais em Nova York. Ao formar uma banda em Nova York, sofremos influência do estilo de vida urbano, que é completamente diferente do estilo de vida em cidades como Seattle e Porland, que não são tão agitadas quanto Nova York. Gosto de muitas dessas bandas de Seattle, mas o som delas é mais retrô, inspirado nos anos 70. Na verdade, conversei com os caras do Mudhoney algumas vezes e eles disseram que estavam chupinhando Stooges em velocidade lenta. Achei engraçado. O Helmet vem mais da cena noise artística de Nova York. Somos muito mais agressivos. Então não vejo semelhança entre nós e Nirvana, Soundgarden, Pearl Jam ou Alice in Chains.
E The Melvins?
Amo The Melvins. Dá pra ouvir influência de Black Sabbath na música deles. São uma das minhas bandas favoritas do Noroeste e são meus amigos também. Eles sempre compuseram ótimas músicas. Mesmo quando estão fazendo coisas com ruído e feedback, continua divertido e interessante de ouvir. Eles certamente me empolgam e eu diria que me influenciaram. Eles usam essas melodias pentatônicas ozzyanas. E a melodia na música Unsung, do Helmet, tem esse som de pentatônica ozzyana. Acho que peguei isso do Melvins.
Confira a parte 2 aqui.
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4 comentários:
Massa, eu tinha ficado meio encanado com esse lance da entrevista. Minha história com ela é assim:
o Samuel entrou em contato comigo mais ou menos uma semana antes do show de SP dizendo que tava atrás de alguem pra fazer essa entrevista (ele já tinha armado de filmar e fotografar o show), que ia ser o Sergio Ugeda mas ele tava viajando. Eu topei, perdi várias horas dando uma pesquisada, especialmente porque não conhecia praticamente nada do Helmet anos dois mil, e consegui ali 15 minutos depois da passagem de som pra conversar com ele (depois de umas três ou quatro horas esperando). Esse papo rendeu a parte mais legal da entrevista, e eu combinei com ele de tentar encontrar ele antes de voltar pros EUA pra terminar a entrevista pessoalmente, que foi onde rolou minha roubada total.
A gente combinou no domingo seguinte no hotel dele, só que ele não sabia qual era o próprio hotel e me passou o errado. Conclusão foi que passei umas horas entre ir pro hotel errado, ficar uma hora cozinhando no saguão, comprar 15 min de internet no hotel, ver no meu email uma mensagem dizendo que o hotel era outro, pegar um taxi, ir pro hotel certo, chegar muito tarde e pegar ele de saída. Daí acabamos nos acertando por email pra terminar por skype, o que rolou alguns dias depois.
Quem fez os contatos pra publicar a entrevista foi o Samuel, eu fiquei meio na dúvida de propor pra +Soma pois tinha visto que você tava fazendo alguma coisa nesse sentido tambem, mas o negócio tinha dado tanto trabalho e consumido tanto tempo (transcrever, traduzir e editar levou séculos tambem) que resolvemos pelo menos sondar os caras, e acho que o timing foi certo, pois acabou rolando, foi mal!
Que foda essa entrevista, captou o lado músical técnico do helmet/page sem parecer entrevista pra uma revista de guitarra.
Imagina, cara. Sua entrevista ficou super legal, e o que rolou foi uma sucessão de desencontros - aliás, no quesito perrengue, vc sofreu bem mais que eu, heheh.
Valeu, João. Foi nessa entrevista que eu tive certeza total de que jornalista musical tem que entender do aspecto técnico da coisa. Se eu não estivesse estudado música iria ter boiado no que o cara tava falando.
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