segunda-feira, 8 de março de 2010

Clássicos do dia 7: Can - Tago Mago


Era uma vez uma banda de rock alemã cujo vocalista teve um colapso nervoso. Até aí nada de mais, já que pessoas vivem surtando o tempo todo em todos os lugares. Mas esta história possui três detalhes que a tornam um tanto mais interessante:

Detalhe 1 – O cantor teve o colapso durante um show da banda. Completamente atordoado, ficou repetindo as palavras “upstairs, downstairs” sobre o palco.
Detalhe 2 – Seu psiquiatra disse que o ataque foi, em parte, ocasionado pelo tipo de música executado pelo grupo, e lhe aconselhou a fazer as malas e voltar para sua terra natal, os EUA.
Detalhe 3 – Para substituí-lo, o baixista do grupo chamou um japonês maluco que vira cantando/rezando para o sol no meio da rua em Munique.

Essa seqüência de acontecimentos bizarros (porém verdadeiros) foi o ponto de partida para o nascimento de uma obra-prima do rock experimental-progressivo-psicodélico-vanguardista: Tago Mago, segundo álbum do grupo Can, lançado em formato de disco-duplo em 1971. Assim como The Velvet Underground & Nico, Tago Mago até hoje impressiona pela originalidade, pelo novo. Se você mostrá-lo pela primeira vez a alguém e disser que o disco foi lançado semana passada, ela não só vai acreditar como vai exclamar: “Nossa, que som diferente!” - ou “Caralho, que porra é essa?!”, o que tem mais ou menos o mesmo sentido: de algo novo, nunca escutado antes.

Também à semelhança do Velvet, o Can teve forte influência da música erudita do século 20: Holger Czukay, baixista do grupo, foi aluno de Stockhausen. Holger também dava aulas de música e foi por meio de um aluno seu, o guitarrista Michael Karoli, que ouviu I am the walrus pela primeira vez e percebeu que havia vida inteligente no rock. Passou a ouvir Jimi Hendrix e Frank Zappa e montou uma banda com Karoli, o tecladista Irmin Schmidt, o baterista Jaki Liebzeit e o vocalista americano Malcolm Mooney (depois substituído pelo loucaço Damo Suzuki).

“[Tago Mago] foi uma tentativa de alcançar um mundo musical misterioso da luz para a escuridão e de volta à luz”. A descrição de Holger é um bom ponto de partida para entender esse instigante álbum, recheado de mudanças de clima, experimentações sonoras, versos repetidos como mantras e momentos de pura viagem lisérgica.

O disco 1 se assemelha bastante ao Pink Floyd fase Syd Barret, e meu conselho para aprecia-lo é: ouça-o com o corpo. Coloque para tocar, relaxe os músculos e se deixe levar pela música. Qualquer movimento louco que der vontade de fazer, faça. Logo você vai se perceber tomado pelo som, mexendo o corpo de maneira louca, libertadora, num semi-transe psicodélico. Como canta Damo Suzuki na ótima faixa de abertura, Paperhouse: You can make everything/ what you want with your head. Nada faz mais sentido.

A segunda música, Mushroom, é curta (pouco mais de 4 minutos) e sem longas intervenções instrumentais, mas mesmo assim pode ser considerada um hino psicodélico. Com um clima sombrio, batida constante e letra abstrata (I saw a mushroom head/ I was born and I was dead), ela remete à clássica White Rabbit, do Jefferson Airplane, verdadeira ode aos alucinógenos.



A viagem continua em Oh Yeah, que começa com uma sutil explosão, utiliza o recurso da gravação de voz tocada ao contrário (que deixa tudo meio assustador) e tem parte da letra em japonês, e desemboca na funky e loooooooonga Halleluhwah, de mais de 18 minutos de duração. Apesar de boa parte dela ser instrumental e de haver alguns solos, não há nenhuma exibição de virtuosismo – o Can queria sempre soar como um organismo musical, não como um conjunto de indivíduos querendo mostrar o quanto são bons tecnicamente.

Quem teve dificuldades em absorver o disco 1 deve esperar mais um pouco para continuar, porque a segunda parte de Tago Mago faz Jefferson Airplane parecer banda de fanfarra. Ele começa com a estranha e amedrontadora Aumgn, na qual a banda deixou o rock de lado e resolveu explorar a eletroacústica. São mais de17 minutos de todo tipo de barulhos esquisitos, violinos desafinados, teclados e guitarras tocados insanamente, percussões tribais e gemidos assustadores, numa espécie de ritual religioso-sonoro de alteração de consciência. Terror e beleza.

Peking O começa com um vocal arrastado acompanhado por um teclado e alguns efeitos eletrônicos até que, aos 2:30, vira um... samba! Bastante desengonçado (afinal, é uma banda ALEMÃ), o batuque dura uns dois minutos. Daí até o fim, a música se torna algo completamente inexplicável, jam session de internos de um manicômio – aliás, entre a gravação de uma música e outra, quando os técnicos tinham que trocar os aparelhos, Holger sempre deixava um gravador ligado. Assim registrou, sem os outros integrantes saberem, todas as improvisações que faziam durante os momentos de espera. Com um precioso trabalho de edição sonora, Holger colocou muitos trechos dessas gravações escondidas no álbum.

Depois dessas duas bombas atômicas em cima do cérebro, Tago Mago encerra com a relativamente tranqüila e curta Bring me coffee or tea, hora do ouvinte finalmente respirar e avaliar se a viagem alucinógena proposta pelo Can foi uma experiência prazerosa ou uma bad trip. De qualquer forma, pode ter certeza de que ninguém volta igual desse passeio...

Aliás... será que Malcolm Mooney ouviu esse disco?

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