O Clássicos de agosto vai ser especial, já que vou falar sobre uma trilogia: a resenha do primeiro disco sai agora dia 7, do segundo no 17 e do terceiro no 27. A trilogia em questão é Masque of Red Death, de Diamanda Galás, que trata do tema da AIDS. O irmão dela morreu da doença e a partir de então ela se tornou militante dos direitos dos HIV+ (ela até tem uma tatuagem “We are all HIV+”).
Divine Punishment, o primeiro da série, é o mais pesado (em todos os sentidos) e, na minha modesta opinião, o melhor dos três. Foi lançado em 1986, ainda no início da epidemia, quando os reaças de plantão pregavam que a AIDS era uma punição divina aos homossexuais, prostitutas e viciados, e que os contaminados deveriam ser apartados da sociedade. Diamanda Galás, que além de cantora e pianista com formação clássica, estudou bioquímica, sabia que a AIDS não se transmite pelo ar e que essa era uma manobra dos fascistóides para segregar quem não segue seus padrões morais/moralistas.
É disso que trata o disco, cujas letras (exceto da última música) são todas tiradas do Antigo Testamento, e, portanto, mostram um deus furioso e vingativo. A letra da última faixa, Sono L’Antichristo, escrita pela própria Diamanda, apresenta dois conceitos importantes para compreender a crítica contida em todo o disco e o paralelo entre textos bíblicos de milhares de anos e a condição dos “””desajustados””” de 1986. O primeiro é o conceito de Satã do Antigo Testamento, entendido, segundo as palavras da artista, como “o inimigo da sociedade, alguém que está separado da sociedade por escolha ou por herança, ou ambos”. O segundo é um conceito que ela mesma elaborou, o de “shit of God” (merda de Deus): “os “erros” de Deus, aqueles que os legisladores querem depositar fora da cidade... e aquelas pessoas que não estão interessadas em produzir para o Estado”.
“Minimalista” é uma palavra inadequada para descrever Divine Punishment, mas há no disco uma clara economia de instrumentos (só piano, teclado, percussão e eletrônicos e nunca todos são usados juntos; aliás, algumas faixas são totalmente vocais) e os próprios arranjos dão espaço ao silêncio e fazem uso de drones. Isso na parte instrumental, porque no vocal o pau come solto. Diamanda Galás é dona de uma técnica impressionante e, além de ter uma extensão vocal fora do comum, é capaz de criar uma gama enorme de timbres com a voz. E o melhor é que ela usa o talento a favor da expressão, mesmo que isso signifique fazer a voz soar “feia”. Como no disco em questão o clima é tétrico, há muitos vocais roucos, quase guturais e desesperados (Deliver me from my enemies pt V) gritos agudíssimos ensurdecedores e voz de choro (Deliver me from my enemies pt VI), cantos de lamento (Deliver me pt IV), e até vocais um tanto diabólicos (Deliver me pt III). Se as pinturas de Bosch representando o inferno tivessem trilha sonora, não seria muito diferente do que se ouve em Divine Punishment:
Sono L’Antichristo fecha o disco de maneira espetacular, com um teclado ao mesmo tempo grandioso e tenebroso, gritos inumanos e um final épico no qual ela (e, por consequência, o irmão falecido e todas as merdas de deus) afirma orgulhosamente sua condição de pária.
Sei que é uma comparação injusta e talvez até equivocada, mas como o disco trata da questão da AIDS e, especificamente, do preconceito contra quem tem a doença, não pude deixar de lembrar do filme Filadélfia. Mas enquanto a produção hollywoodiana aborda o tema de maneira piegas e mostra o doente quase como um coitadinho, Diamanda Galás dispensa a piedade e o sentimentalismo e desfere um belo e assustador soco no estômago do ouvinte.
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