terça-feira, 17 de julho de 2012

Especial Glenn Branca: the treta goes on...

Não queria ficar nessa de ti-ti-ti avangardê por aqui, mas descobri hoje que o incidente com John Cage não terminou naquela manhã de verão em Chicago. Em 1996 (14 anos após a famigerada ocasião e 4 anos após a morte de Cage), Glenn Branca foi entrevistado pela revista Musicworks e comentou as declarações polêmicas de Cage. Então um fã de Cage chamado David Miller enviou uma carta dizendo que a história não era bem assim, e Branca retrucou com outra carta, na qual conta sua versão dos fatos.

A seguir, ambas as cartas, devidamente traduzidas para a língua de Camões (aceito agradecimentos em forma de elogios, bombons de cereja, cerveja e depósitos bancários, ok?):

Carta de David Miller

Achei a entrevista com Glenn Branca, na Musicworks 66, muito interessante e gostaria de agradecê-los pela publicação. Estou confuso, no entanto, com a interpretação de Branca da famosa crítica que John Cage fez à sua música em 1982. Ele deu aos leitores apenas metade da história: a sensacionalista, escandalosa (sem dizer melodramática) primeira metade.

O encontro Cage/Branca foi discutido várias vezes em silence, uma lista de discussão online centrada em Cage e sua obra. Está documentado que Cage logo modificou, e mais tarde se retratou, sua forte reação inicial contrária à música de Branca, que ouviu em 7 de julho de 1982 no New Music America Festival. Peter Gena, co-diretor daquele festival, afirmou na lista que dois dias depois, em 9 de julho, “Cage mencionou para mim que reconsiderou a peça de Branca e decidiu que talvez tivesse exagerado”. Isso está confirmado no livro Sonic Transports, de Carlo Gagne (página 33). Gagne também cita uma entrevista publicada no Chicago Sun Times no dia 18 de julho, na qual Cage afirma: “Como eu estava preocupado, perguntei às pessoas que estavam conversando comigo o que elas tinham achado. Eu revi meus conceitos porque várias pessoas disseram que foram revigorados pela música. Um deles disse que ouviu sons que nunca tinha ouvido antes. Bem Johnston disse que foi como olhar por um microfone para um mundo que ele nunca tinha visto. Um crítico belga disse que esse era o próximo passo, a semente do século 21”. (Obrigado ao Brian Guild por ter apontado essa fonte)

Voltando à lista silence, Herb Levy escreveu que em dezembro de 1993 [aqui o cara provavelmente digitou errado a data, porque Cage morreu em 92] Cage foi “a uma apresentação da ensemble de Branca no On the Boards. Esse lugar é bem menor do que o Navy Pier de Chicago, então Cage estava bem mais próximo do palco. No On the Board, Cage viu que os instrumentistas não eram comandados, que eles podiam interagir socialmente, sem serem forçados por Branca a fazer nada. Além disso, por causa do tamanho do local, não havia sistema de PA, cada instrumentista era ouvido por meio de seu amplificador individual, então o som era muito melhor do que a costumeira maçaroca de guitarras de Branca, Chatham e outros. Depois de conversar com Powell e com alguns de nós e ver a música de Branca em um cenário diferente, Cage retirou seus comentários anteriores”.

Levy continua: “Nessa época, os comentários anteriores de Cage já tinham circulado na Ear e em outras publicações impressas, além de terem sido registrados em fita... e não houve uma coletiva para se retratar. E, é claro, as primeiras opiniões de Cage são citações midiáticas muito melhores para Branca. Então a citação original vai provavelmente sempre estar presente, apesar de não ser uma representação precisa de (tudo) o que Cage pensa sobre Branca”.

Uma entrevista é, claro, feita para contar uma história pessoal na maneira que melhor servir a ele ou ela. Isso faz parte de uma boa entrevista. No entanto, leitores interessados em um ou em ambos os compositores deveriam gostar de saber que essa história envolve algo mais do que um romance edipiano gasto. Ou, Como Gagne coloca: o suposto “axioma ‘Cage chama Branca de fascista’ não passa de uma hipótese”.



Resposta do Glenn Branca

Obrigado por me enviarem a carta de David Miller em relação ao incidente com Cage – que chamo de “Baboseira de Cage”.

O que me surpreende na carta dele, e em outras similares que já vi, é o fato de que eu sou atacado e criticado pelo que foi certamente uma baboseira do Cage. Parece-me que o problema real aqui é simplesmente o fato de que os seguidores de Cage não aguentam imaginar que ele não era um santo. Eu não fui a pessoa que criou essa controvérsia. Não tive nada a ver com isso. “O sensacionalismo, o escândalo, o melodrama” foram todos criados por John Cage, para começo de conversa. Em várias, várias entrevistas desde então eu fui questionado a explicar o que aconteceu e por que Cage disse o que disse. A verdade é que eu não tenho a menor ideia do que aconteceu. E durante os onze anos em que Cage continuou vivo, ele nunca deu uma explicação pública. Acho que é justo dizer que a responsabilidade de fazer isso era dele, não minha. Sim, é verdade que em determinado momento ele afirmou que poderia reconsiderar sua posição. Mas ele disse isso quando o estrago já estava feito. Algum jornal, revista ou estação de rádio publicaria uma retratação da sua afirmação?

Em uma apresentação que fiz em Munique, alguns anos após os comentários de Cage, um grupo de pessoas na plateia começou a gritar “fascista” nos intervalos entre os movimentos da minha sinfonia. Obviamente aquelas pessoas não tinham ouvido nenhuma “retratação” que Cage pudesse ter feito. Também não há dúvida de que eles foram incitados por Cage, já que um cassete com seus comentários, lançado pela Crepuscule Records, foi tocado por estações de rádio da Europa toda. As afirmações sobre mim na fita duram quinze minutos e em nenhum momento ele se retrata, exceto quando diz “Eu não proibiria” e então ri. Acho que quando alguém vai tão longe a ponto de dizer que sua música “poderia ocasionar o fim do mundo” (como Cage o faz na fita), as pessoas vão acreditar que ele realmente está falando sério. Para retratar uma afirmação assim é preciso mais do que um simples “Eu não quis realmente dizer isso”. A verdade é que a fita é engraçada. Tantas observações dele são tão sem noção que discuti-los seriamente também seria absurdo. Mesmo assim as pessoas continuam levando a sério. John Cale (não Cage), de todas as pessoas, resolveu retomar de onde Cage parou e também me acusou de ser fascista. Ele também nunca me conheceu. Ele também não sabia nada sobre mim pessoalmente.

Ironicamente, Ned Sublette, membro da minha ensemble por anos, era amigo de Cage e estava lá em Chicago. Sempre me perguntei por que Cage nunca se deu ao trabalho de perguntar para o Ned nada sobre mim ou sobre minha prática musical antes de começar a famosa diatribe. É claro que, por outro lado, é de conhecimento geral na nova cena musical que Cage tinha uma quedinha por ataques do tipo, e gente como Steve Reich, Laurie Anderson e Julia Eastman foram todos publicamente reprimidos pelo gracioso mestre.

Também devo mencionar, só para ficar gravado, que os comentários de Cage foram bem mais longos, detalhados e tornados públicos do que a maioria das pessoas percebe. O artigo no Chicago Sun-Times foi apenas um de vários. Ele começou uma discussão no painel na manhã seguinte à minha apresentação com um comentário longo e bem preparado sobre a minha música. Depois houve uma discussão aberta, e ao menos uma hora foi sobre a minha música. Tudo isso foi gravado. Ele também fez a acima mencionada entrevista para Crepuscule com Wim Mertons, ator do livro American Minimal Music, além de fazer mais comentários para a imprensa e para amigos. O festival em Chicago naquele ano foi dedicado a Cage em comemoração ao seu 70º aniversário. A cerimônia de abertura foi televisionada e seu bolo foi cortado pelo prefeito de Chicago. Durante tudo isso, Cage anunciou que iria assistir às 100 ou mais apresentações do festival naquele ano. Para mim, como compositor jovem, ser escolhido daquela maneira por John Cage foi um choque. Meu concerto havia recebido dez minutos de uma ovação de pé por virtualmente toda a plateia de 1200 pessoas. A apresentação foi perfeita. Eu estava em êxtase. Na manhã seguinte ganhei essa surpresa desagradável que até hoje, 14 anos depois, continua a ressoar. Não sei se Cage algum dia soube que a peça apresentada naquela noite não era um movimento da Symphony n. 2, como foi erradamente listado no programa, mas Indeterminate Activities of Resultant Masses, que eu havia estreado em Nova York quase um ano antes. Acho que se ele soubesse que o que ouviu era virtualmente uma homenagem a ele, sua reação teria sido bem diferente.

Se eu fosse dar uma versão completa e precisa dessa história, e de modo algum ela termina em 1982, acho que poderia tranquilamente encher umas trinta ou trinta e cinco páginas. Quando Mr. Miller diz em sua carta que eu só ofereci a primeira metade, na verdade foi somente o primeiro capítulo.


Continue acompanhando o Especial Glenn Branca pela fanpage do Destruindo Pianos no Facebook.


.

Nenhum comentário: