segunda-feira, 16 de março de 2009

Paulicéia Avant-garde: O inimigo público número 1


Como todo movimento/cena cultural, a Vanguarda Paulistana não surgiu de uma hora para outra. E também como todo movimento/cena cultural, ela possui um marco inicial, espécie de ponto de referência fictício que serve para situa-la no espaço e no tempo. O ano: 1980. O lugar: São Paulo, claro. O evento: o lançamento de Clara Crocodilo, primeiro álbum do compositor, cantor e pianista Arrigo Barnabé.

Mas, para compreender esse disco, é preciso voltar um pouco no tempo. Mais exatamente para a primeira metade dos anos 1920, quando o compositor alemão Arnold Schoenberg criou o dodecafonismo. O sistema tonal já estava em crise e o próprio Schoenberg já havia composto diversas obras que podem ser consideradas atonais ou ao menos “nas fronteiras da tonalidade”, como é o caso de Pierrot Lunaire e Noite Transfigurada. No entanto, Schoenberg tinha muito respeito à tradição e não queria que o fazer musical se tornasse um “tocar qualquer nota”. Por isso, criou um método de composição rigorosíssimo chamado dodecafonismo, que consiste em dar a mesma importância aos doze sons da escala cromática e, assim, não permitir que nenhuma das notas se torne a tônica. Explicando melhor: é um sistema que abole as noções de tensão e repouso, que acaba com a ideia de tônica – subdominante – dominante. Explicando ainda melhor: é um jeito de tirar o chão do ouvinte.

Nos anos 1970, um jovem londrinense que vivia em Sampa começa a se interessar pelo método composicional desenvolvido por Schoenberg e tem a ideia de transporta-lo para a música popular, mais precisamente para o terreno da canção. Esse jovem, que possuia o curioso nome de Arrigo Barnabé, também era fã de histórias em quadrinhos e tinha um certo interesse pelo submundo da metrópole, assim como por programas de rádio sensacionalista. Costurou todas essas referências, adicionou toques de humor negro e, como uma espécie de doutor Frankenstein da música, criou seu monstro/obra-de-arte.

Arrigo já havia participado de festivais e shows coletivos em sua cidade natal, Londrina, mas foi em 1979 que mostrou sua criatura maldita em cadeia nacional ao participar do Festival Universitário da Canção produzido pela TV Cultura. Arrigo inscreveu duas músicas no concurso: “Infortúnio”, que não foi classificada para as finais, e “Diversões Eletrônicas”, que ganhou o primeiro lugar no festival, apesar de todas as vaias da plateia:

Obs: olha só quem é o baixista... aliás, os arranjos de base (bateria-baixo-guitarra) dessas duas músicas foram feitos por ele e por Paulo Barnabé, irmão de Arrigo e baterista da banda. Ah, caso não tenha dado para ver direito, o baixista é ITAMAR ASSUMPÇÃO.






Depois desse festival, a vocalista principal da banda, Neuza Pinheiro (a moça de flor no cabelo) teve um problema nas cordas vocais e não pode cantar por um bom tempo. Em seu lugar, entrou Tetê Espíndola, cantora sul-matogrossense de voz agudíssima e capacidade para fazer tudo o que quisesse com ela. Com essa formação, a banda participou de um festival na extinta TV Tupi, na qual mostrou a música “Sabor de Veneno” (nome que seria em seguida adotado pelo conjunto). Depois, foi a vez de Itamar sair e ir cuidar de seu clássico Beleléu. E então foi a hora de Arrigo entrar em estúdio e gravar Clara Crocodilo.

O disco tem como tema o bas-fond de São Paulo, universo habitado por prostitutas com calcinha que imita pele de leoparda (“Acapulco Drive-In”), bêbados e viciados em jogos de fliperama (“Diversões eletrônicas”), viúvas se descabelando no enterro do marido e, em seguida, indo ao Riviera se entregar para todo homem que encontrasse (“Infortúnio”). Mas a cereja do bolo é a história do office-boy que, sem grana para sair, passa a noite de sábado em casa assistindo TV e descobre que sua antiga namorada havia virado chacrete. Para reconquistá-la ele precisaria ter dinheiro, e isso é algo que seu emprego não vai lhe proporcionar. Então se lembra de um anúncio de jornal no qual uma empresa promete uma boa remuneração para quem topar testar seu novo produto. O office-boy vai até a empresa e lá recebe uma injeção que o transforma em um “terrível monstro mutante”: Clara Crocodilo.

São paulo, 31 de dezembro de 1999. Falta pouco, pouco, muito pouco mesmo para o ano 2000 e você, ouvinte incauto, que no aconchego de seu lar, rodeado de seus familiares, desafortunadamente colocou este disco na vitrola, você que, agora, aguarda ansiosamente o espocar da champanha e o retinir das taças, você, inimigo mortal da angústia e do desespero, esteja preparado... o pesadelo começou. Sim, eu sei, você vai dizer que é sua imaginação, que você andou lendo muito gibi ultimamente, mas então por que suas mãos tremeram, tremeram, tremeram tanto, quando você acendeu aquele cigarro... e por que você ficou tão pálido de repente? Será tudo isto fruto da sua imaginação? Não, meu amigo, vá ao banheiro agora, antes que seja tarde demais, porque neste mero disco que você comprou num sebo, esteve aprisionado por mais de 20 anos, o perigoso marginal, o delinqüente, o facínora, o inimigo público número 1: Clara Crocodilo...

É com esse texto, proferido por Arrigo em tom de programa policial de rádio popular, que se inicia a música “Clara Crocodilo”, a última faixa do álbum. Essa introdução metalinguística é simplesmente genial (e surreal), assim como o restante da música. Após dizer que não vai se entregar e que não vai morrer nas mãos de um tira, Clara desafia o ouvinte:

Ei, você que está me ouvindo, você acha que vai conseguir me agarrar? Pois então, tome... Já vi que você é perseverante. vamos ver se você segura esta... Meninas, vocês acham que eles querem mais? Querem sim! Você, que então é tão espertinho, vamos ver se você consegue me seguir neste labirinto.

Começa então, uma pequena fuga (forma musical), que desemboca no refrão: Clara Crocodilo fugiu, Clara Crocodilo escapuliu. É ou não é genial? Arrigo consegue transportar técnicas do universo erudito para a música popular sem parecer pedante. A chave é, sem dúvida, seu humor ácido. Mas não para por aí: como eu disse lá em cima, o dodecafonismo tira o chão do ouvinte. E a canção é o terreno das certezas: é música feita para ser assobiada. Como então, Arrigo conseguiu unir esses dois universos? Algumas frases musicais são repetidas diversas vezes. Dessa forma, apesar de serem frases bem “tortas”, elas acabam se tornando familiares aos ouvidos. E assim Arrigo criou peças dodecafônicas que podem ser assobiadas. É genial.

Dá pra baixar esse disco pelo Loronix. E pode ir sem culpa, porque ele está esgotado tanto em LP como em CD.

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