domingo, 22 de fevereiro de 2009

Conexão EUA - Egito - Saturno



Afrofuturismo é uma ideia tão bizarra quanto apaixonante: em linhas gerais, traça um paralelo entre a história negra americana e a ficção científica (os escravos trazidos da África para a América foram “abduzidos por alienígenas” e, na nova terra, tiveram seus corpos robotizados) e propõe que essa conexão seja usada como meio de expressão cultural.

O campo da arte em que o afrofuturismo mais se manifesta é a música, e o principal nome dessa corrente é Sun Ra, pianista que, acompanhado de sua Arkestra (que ao longo do tempo teve o nome mudado para Solar Arkestra, Astro Infinity Arkestra, Myth Science Arkestra, Intergalactic Arkestra, entre outros), injetou doses inimagináveis de psicodelia no free jazz durante os anos 60. Isso sem contar a fixação do cara pelo tempo dos faraós, o que adicionou mais um elemento (o Egito Antigo) à já complexa equação do afrofuturismo. Ah, e ele também dizia ter vindo de Saturno.

Mas não é preciso se interessar por OVNIs ou por Tutancamon para apreciar a música de Sun Ra. Além de ter levado a liberdade na forma e a ausência de temas ou bases harmônicas ao extremo, ele foi um dos primeiros (talvez o primeiro...) jazzistas a utilizar sintetizadores e efeitos de eco, criando sons que pareciam vir do espaço sideral. “Calling Planet Earth” mostra bem essas características musicais - e seu vídeo, cheio de imagens caleidoscópicas, também traduz bem as “doses inimagináveis de psicodelia” de que falei:



A maior dificuldade para penetrar no universo do músico, no entanto, não é sua estranheza e sim a quantidade de material que ele produziu: são mais de CEM álbuns. Assim, fica difícil esolher o que ouvir primeiro. Fui meio pela pesquisa, meio pelo chute e meio pelo que havia para baixar na net acabei ouvindo The Heliocentric Worlds of Sun Ra Vols. 1 & 2 e Space is the Place (clique para baixar). Porém, o que parece ser a cereja do bolo (Solar-Myth Approach Vols. 1 & 2) não consegui baixar de jeito nenhum...

The Heliocentric Worlds of Sun Ra Vols. 1 & 2 (1965)

Em The Heliocentric..., os sons sintéticos são muito pouco utilizados, mas mesmo assim Sun Ra promove uma viagem interessantíssima por meio de diálogos entre instrumentos. Apesar de sua Arkestra contar com quase quinze integrantes, quase nunca mais de três ou quatro instrumentos aparecem simultaneamente (a não ser em momentos de caos sonoro proposital). Na maioria das vezes, são apenas dois instrumentos, que constroem uma “conversa” sem nenhum acompanhamento harmônico ou tema para se basear melodicamente. Após um certo número de compassos, esses instrumentos dão lugar a outros, que constroem um novo diálogo, e assim a música caminha. Ao invés de fazer um trajeto de A a B (como acontece com uma sonata ou sinfonia) ou de dar círculos ao redor de A (à maneira de músicas de jazz que seguem o padrão tema - solos intermináveis – tema), Sun Ra propõe uma viagem sem itinerário definido, como o mochileiro que empacota suas coisas e pega o primeiro ônibus que passar – e que pode parar na cidade ao lado, na Índia ou em Marte.

Space is the Place (1972)

O álbum abre com “Space is the Place”, uma viagem de mais de 21 minutos em que a Arkestra é acompanhada pelos cantores da Space Ethnic Voices. Completamente diferente das faixas de The Heliocentric..., a forma da música é circular, com os vocalistas repetindo a frase “Space is the place” durante toda a música. Sobre essa espécie de mantra, acompanhado por uma percussão vigorosa, se revezam “solos” de instrumentos de sopro totalmente alucinados, barulhos sintetizados e até alguns berros, criando um contraste entre a constância hipnótica das vozes e a instabilidade caótica dos instrumentos. Depois desse tour de force, seguem as faixas “Images” e “Discipline”, que apresentam um jazz mais tradicional, com tema, harmonia, solos e tudo. Já “Sea of Sounds” é uma ode ao barulho (nem preciso dizer que amei...) e “Rocket Number Nine”, a última do disco, retoma “Space is the Place”: voltam as vozes (dessa vez repetindo a frase “Rocket number nine to go to the planet, to the planet Venus) e os mesmos barulhos de sintetizador. Vai embarcar?


E se quiser saber mais sobre Afrofuturismo, o site Rizoma traz diversos textos sobre o tema, inclusive de autoria de Mark Dery, crítico cultural criador da expressão "afrofuturismo". Recomendadíssimo.

Um comentário:

R disse...
Este comentário foi removido pelo autor.