terça-feira, 7 de abril de 2009

Clássicos do dia 7 : Radiohead - Kid A



“Não sabia que era permitido compor música assim”

Quem viu os shows que o Radiohead fez recentemento no Brasil deve concordar que, dentre as bandas em atividade e levando em conta o que elas andam fazendo no momento, o grupo de Thom York e cia. é um dos mais importantes e influentes do mundo (eu arriscaria dizer que é O mais importante e influente...).
Mas para atingir o atual status, o Radiohead teve que percorrer um longo caminho. É possível apontar três momentos cruciais na trajetória da banda: o lançamento de OK Computer em 1997, de Kid A em 2000 e de In Rainbows em 2007.

OK Computer, com sua coleção de pérolas como “Karma Police”, “Exit Music (for a film)”, “Electioneering”, “Lucky” e a quase épica “Paranoid Android”, foi o disco que abriu os ouvidos da crítica e do público para esses cinco rapazes britânicos. Eles já haviam lançado dois discos mais-ou-menos (The Bends é até interessante, mas Pablo Honey...) e emplacado alguns sucessos como “Creep” e “Fake Plastic Trees”, mas foi com OK Computer que provaram não ser apenas mais um nome do britpop e muito menos mais uma imitação boba de Nirvana. Kid A, disco que veio em seguida, foi o momento em que eles mergulharam no experimentalismo, fazendo largo uso de elementos de música eletrônica de vanguarda. E In Rainbows foi o álbum em que o Radiohead aliou com perfeição o experimentalismo de Kid A com as melodias incríveis de Ok Computer, criando uma obra que pode ser usufruída em diversos níveis. Quem ouve pela primeira vez, ou ouve sempre de maneira superficial, encontra belas composições, melodias assobiáveis e alguns efeitos eletrônicos interessantes. Quem quer ir mais fundo se depara com pequenos detalhes escondidos em arranjos que, apesar de econômicos, não tem nada de simples.

Mas como o negócio aqui é esquisitice, falemos mais de Kid A.

Apesar de em todo lugar a autoria das faixas do disco estar atribuída aos cinco integrantes da banda, a sonoridade (des)construída pelo Radiohead nesse álbum se deve ao guitarrista Jonny Greenwood, que na verdade é um multi-instrumentista com uma bagagem musical surpreendente e talvez o único ser no mundo do rock que coloque Messiaen e Penderecki como grandes influências. Sobre Messiaen, aliás, olha o que ele disse numa entrevista:

I first heard Messiaen when I was 15 or 16—the Turangalîla-Symphonie—and just found it magical, especially with the ondes martenot swooping around with the strings (who seemed to be playing an entirely different piece of music). I didn't know it was allowed to write music like that.

Ouvi Messiaen pela primeira vez quando tinha 15 ou 16 anos – a Turangalîla-Symphonie – e achei mágico, especialmente pelo ondes martenot atancando junto às cordas (que pareciam estar tocando uma música completamente diversa). Eu não sabia que era permitido compor música assim.

Portanto, dá para inferir que boa parte das maluquices do disco é fruto da cabeça de Mr. Geenwood. Uma delas, aliás, foi utilizar o instrumento eletrônico ultra-vintage Ondes Martenot. Não sei (e não consegui achar essa informação em nenhum lugar confiável) em quais faixas exatamente ele utiliza o instrumento, mas sei que “How to disappear completely” é uma delas. No disco, o Ondes Martenot acabou um pouco escondido pela parte orquestral, mas nesse vídeo dá para ouvir bem a sonoridade da geringonça:



Outra maluquice foi ter usado samples de “Mild und Leise”, de Paul Lansky, e “Short Piece”, de Arthur Kreiger, em “Idioteque” (clique para baixar). Essas peças, exemplos da música eletrônica de vanguarda, foram lançadas em um álbum chamado First Recordings – Electronic Music Winners, de 76, que Jonny andava ouvindo bastante. É meio que impossível descobrir que parte de “Short Piece” foi usada em qual parte de “Idioteque”, mas vem de “Mild und Leise” (mais especificamente dos 0:43 aos 0:50 da peça) a fantástica progressão de acordes que sustenta a faixa de Kid A. Tanto que, em um relançamento do disco, “Idioteque” foi creditada como sendo de autoria de Radiohead e Paul Lansky.

A terceira maluquice atende pelo nome de “Treefingers” e é música ambiente na concepção mais “Brian Enoesca” do termo. Totalmente não-narrativa e constituída por pequenos elementos vão sendo adicionados e retirados, é como se “Treefingers” acontecesse não no tempo, mas sim no espaço. É música para ocupar lugares e não para realmente ser ouvida. É música feita para que você não preste atenção nela. Observação: não sei se “Treefingers” foi ideia de Greenwood, mas pelo background do cara, desconfio que sim...

Tudo no lugar errado

Mas não são só nesses três extremos que a esquisitice aparece em Kid A: todo permeado por elementos eletrônicos e arranjos que fogem totalmente ao que se espera de uma banda de rock (basta ver que as guitarras só aparecem para valer na SEXTA faixa, “Optimistic”), a impressão que tenho ouvindo o álbum é que as músicas são menos feitas de harmonia e melodia do que de climas, atmosferas. Claro que harmonia e melodia ajudam a criar o clima e a atmosfera, mas a grande força de Kid A está na “dança de frequências” possibilitada pela eletrônica.

As letras também produzem um efeito de estranhamento: afinal, o que versos como “Yesterday I woke up sucking a lemon” ou “Standing in the shadows at the end of my bed” querem dizer exatamente? Suponho que, exatamente, não queiram dizer nada. Assim como a parte instrumental de Kid A não pode ser compreendida dentro da lógica de melodia/harmonia, as letras não podem ser encaradas como códigos possíveis de serem decifrados. Elas sugerem certas imagens e situações, mas nada é preto-no-branco. O mesmo acontece com a arte do disco: que mensagem o Radiohead quer passar por meio das imagens (alteradas) de geleiras que vem no encarte ou por meio dos desenhos bizarros que vem na parte interna da embalagem? Novamente, suponho que seja nada. Ou melhor, não é nada que se possa apontar objetivamente.

Kid A é uma obra aberta em todos os sentidos. Sugiro que a melhor maneira de desfruta-la é não tentar procurar um sentido exato nela, e sim se deixar levar pelo que ela sugere. Também no mundo da música pop é permitido compor assim.

E no Lágrima Psicodélica dá pra baixar todos os discos do Radiohead. Vai fundo.

3 comentários:

Desastres do Cotidiano disse...

Não concordo com o conceito de obra aberta do Umberto Eco, inclusive Luciano Berio, que ele usa como exemplo também não concorda... Mas concordo que Kid A é como um "pop" Aleph de Jorge Luis Borges, explora fronteiras, e o titulo de uma das músicas é muito emblemático para mim: In Limbo.

Raquel Setz disse...

In limbo é minha música favorita do disco, por sinal.

Nem tenho bagagem pra discutir o conceito de obra aberta de Umberto Eco, mas usei aqui a expressão no sentido de que é impossível pegar uma música do disco Kid A e dizer "essa música é sobre isso" (à exceção de Morning Bell, que trata claramente da separação de um casal).
Indo ao extremo, mas só para ilustrar: a mensagem da música ultrapop (e também genial)I want you back, do Jackson 5, é muito clara. A de Idioteque, não.

A comparação com O Aleph (amo esse livro) me deixou intrigada... poderia explicar melhor?

Desastres do Cotidiano disse...

In Limbo também é a minha favorita!!


Antes, na verdade, nenhuma música diz nada sobre "algo".Porém uma letra de música pode dizer. Mas a musica só diz de si mesma, por isto, acho que se for usar o termo "aberto" mesmo que de maneira geral, poderia ser aplicado à toda musica.

Mesmo falando apenas da letra, existe aquilo que o jackson 5 cantam, existem poemas celtas (completamente loucos por sinal) e Mallarmé por exemplo. Talves "I want you back" em um sentido diga pouco ou nada, e em outro sentido pode-se dizer também que a poesia de Mallarmé não diga nada com nada.

Estamos falando de arte, e na verdade ela NUNCA diz pouco.

Por isto quis jogar o Aleph na história, faz tempo que não leio este conto em específico, mas trata-se ali de definir algo que está fora do jogo tradicional das palavras, imagine algo que nunca fora percebido, como contar para os outros através da linguagem, o que é possível fazer? ...Levar a linguagem até a sua própria margem, para que outro consiga ver o mesmo.

In Limbo pegou a linguagem da musica pop e levou a seu limite (adorei saber da influência do Messian e do Penderecki), por isto a sensação de falta de referente, porque a própria forma de expressão, em um sentido mais fundamental foi alterada.

E conseguiram! este álbum consegue nos fazer ver também!!