quarta-feira, 2 de março de 2011

440Hz edição extra: Rock japonês - no Brasil

Rock andrógino otaku

Guitarras distorcidas, maquiagem, animes, orkut e tambores de maracatu: benvindo ao mundo peculiar do rock nipo-brasileiro

Antes de ler o texto, assista ao videoclipe abaixo:



Se você achou um lixo, tenho uma má notícia: essa é uma das bandas pioneiras de J-rock (rock japonês) e há grupos semelhantes no Brasil. Se você ficou interessado(a) no vocalista com cara de menina, também tenho uma má notícia: dificilmente você irá encontrar um clone do Atsushi Sakurai dando sopa pelos trópicos. Mas se você simplesmente gostou do som, eu finalmente tenho uma boa notícia: nas próximas linhas você vai saber mais sobre a música pop japonesa e sua influência no Brasil.

Não se sabe exatamente quando o rock deu as caras no Japão, mas ele começou a ganhar força nos anos 80 com as bandas X Japan e Buck Tick. Atravessou as fronteiras da terra do sol nascente no fim dos anos 90 devido a dois acontecimentos marcantes. O primeiro foi a morte de Hide, guitarrista do X Japan que em 1998 se enforcou com uma toalha de rosto presa à maçaneta da porta do banheiro do hotel onde estava hospedado. Além das circunstâncias esdrúxulas, que dão margem a teorias da conspiração, a morte de Hide foi notícia no mundo todo por desencadear um fenômeno mais ou menos comum no Japão: quando alguém muito famoso ou querido se suicida, alguns fãs se matam exatamente da mesma maneira.

O segundo fator que fez o J-rock se popularizar no Ocidente foi o surgimento de sites de compartilhamento de arquivos, cujo precursor foi o Napster, inaugurado em 1999. Com o acesso a praticamente todo material produzido pelas bandas de lá, não demorou muito para que o J-rock ganhasse sua versão brasileira. Segundo Hick Duarte, fundador do site Radio Blast!, especializado em música pop oriental, os primeiros grupos foram Psygai e KuroHana, ambos do Rio de Janeiro e criados logo no começo dos anos 2000.

Made in Brasiru

Embora não seja um gênero musical propriamente dito, há duas características que diferenciam as bandas de J-rock (japonesas ou não) das demais: as letras em japonês e o visual kei. Criado nos anos 80 como uma maneira de confrontar uma sociedade extremamente regrada e padronizada, o visual kei é marcado por cabelos coloridos, indumentária espalhafatosa que pode ser inspirada no glamour dos anos 50, nos exageros da corte francesa do século 18 ou nas roupas negras do gótico oitentista, e muita androginia. No caso das bandas japonesas Malice Mizer e Versailles, por exemplo, é impossível perceber que aquelas donzelas de vestido e maquiagem são, na verdade, homens. Mas, se para os ocidentais de cabeça fechada essa confusão de gêneros é a prova de que o fim do mundo se aproxima, para os japoneses isso faz parte de uma tradição milenar. “No Japão, antigamente, tinha teatro que era só homem que apresentava. Os que tinham rosto mais feminino faziam papel de mulher. A androginia está presente desde a antiguidade”, explica Haru, baixista da banda paulistana Erisu. “Pras meninas, quanto mais o cara parece com mulher, mais bonito ele se torna. E se ele se enrosca com outro homem de brincadeira, melhor ainda”, completa, rindo.

Zan e Yue, guitarristas da Erisu em 2007, quando a banda usava visual kei


A Erisu existe desde 2004 e faz covers de bandas como Dir en Grey, Ayabie e Nightmare. “As bandas de J-rock fazem músicas que contam uma história profunda, passam uma mensagem. Se você quiser, até pode ouvir por puro entretenimento, mas não precisa ser só isso”, explica o vocalista, Camui. Já para Haru o mais interessante é a mistura de estilos: uma mesma banda pode agregar influências de metal, hard rock, punk, eletrônica e até de música brasileira. O Dir en Grey, um dos nomes mais consagrados da cena japonesa, vai do nu metal pesadão para a balada em poucos compassos e trata de temas polêmicos, como aborto.

Os integrantes da Erisu até tentaram adotar o visual kei no começo da carreira, mas hoje apostam numa produção mais clean. “Aqui é difícil encontrar o material que você precisa para uma produção decente. Até tem um pessoal que tenta, mas fica na tentativa”, opina Camui. Esse é apenas um dos perrengues pelos quais as bandas brasileiras de J-rock passam. Encontrar integrantes é um problema e as cinco bandas com quem conversei passaram por trocas intensas de formação. Ren, baixista da Kazoku NiBan, conta que ele e o vocalista, Nel, vinham desde 2006 tentando montar um conjunto de J-rock. Conseguiram uma formação estável só na metade de 2009 e o show de estreia aconteceu em setembro de 2010: “Encontrar gente que toca é fácil, difícil é achar quem é responsável e leve a sério”.

Andy, Nel e Nah no show de estreia da Kazoku NiBan no Animecon 2010


O que mais chamou a atenção de Ren no J-rock foi a sonoridade do idioma japonês, totalmente diferente do inglês e das línguas latinas. Ironicamente, o idioma é um dos maiores entraves na hora de achar lugares para tocar. Mas não chega a ser uma barreira intransponível. Em setembro de 2010, a Erisu participou de um festival no Manifesto Bar, muito frequentado pelo pessoal que curte metal, e, apesar das torcidas de nariz iniciais, o público acabou gostando do que ouviu. Quando entrevistei a banda, eles estavam com show marcado no Cerveja Azul, bar que também não tem nada a ver com a cultura japonesa. Além disso, alguns clubes pequenos abrem espaço para baladas esporádicas de J-rock como Macabre, Visual KK, Alterna J-rock e Miss Take. Em 2006, a própria Erisu organizou uma noite chamada Lust no Dynamite Pub, na Vila Madalena. O evento teve um público bom, mas nem sempre é assim: “O problema é que os fãs são acomodados e acabam não indo. O por que a gente ainda não sabe”, revela Camui. Talvez um dos motivos seja a pouca idade dos fãs de J-rock, que acabam barrados em casas noturnas.

Erisu, No Manifesto


As bandas têm mais espaço para se apresentar em encontros de anime (aqueles desenhos animados japoneses em que todos os personagens têm olhos enormes), mas o público que gosta de J-rock não é necessariamente o mesmo que curte Pokemon. “Nesses eventos, o pessoal já conhece a cultura japonesa, então aceita com mais facilidade”, diz Camui. “Tocar em eventos de anime acaba sendo um mal necessário”, completa o guitarrista Zan, também da Erisu. Bruno Bort, guitarrista da Plaise a Dieu, não vê com bons olhos a confusão entre o universo dos animes e o do J-rock: “Tem muita banda que cresce porque toca música de anime. É vender seu som pra atrair público”. A Plaise a Dieu existe desde meados de 2005 e é formada por integrantes de Santos e de São Paulo. O repertório é baseado em covers de L’arc-en-Ciel, Dir en Grey e MUCC e em composições próprias em japonês.

Paula Magario, Rafael Masoni e Bruno Bort, da Plaise a Dieu, encarando o "mal necessário"


Mas o fato é que as próprias bandas japonesas de rock gravam temas de anime e isso acaba sendo um canal para que gente do mundo todo conheça o estilo. E, se o J-rock brazuca não anda bem das pernas, não dá para culpar só os fãs ou os donos de casas de show. Os grupos daqui ainda são muito amadores, tanto que a maior plataforma de divulgação são comunidades no orkut. Muitos têm página no myspace sem música nenhuma, outros disponibilizam faixas em mp3 ou vídeos no youtube com qualidade de áudio precária. As bandas formadas por pessoas na faixa dos 20, 25 anos, sofrem com a falta de tempo para ensaiar, já que os integrantes trabalham e estudam. E as montadas por adolescentes em busca de diversão acabam assim que a curtição passa e os interesses mudam.

Planeta otaku

Se eventos de anime são um mal necessário para as bandas de J-Rock, também são para quem resolve escrever sobre elas. Assim, no dia 10 de outubro, parti para o Anime Fantasy, realizado em uma escola do bairro da Saúde. Para quem nunca viu sequer um episódio de Dragon Ball Z, entrar em um evento de anime é como aterrissar em um planeta onde quem usa calça jeans e camiseta é imediatamente identificado como alienígena – só pra enturmar quem também nunca foi: imagine fãs de Star Wars, adicione os elementos “pouca idade”, “travestismo”, “bebida à base de leite de soja” e voilá!


Após caminhar por entre guerreiras sexies, Super Mario e uma colegial que até agora não sei se era uma menina com muito buço ou um cara com pouca saia, e de assistir a um concurso de cosplay, fui para o auditório do colégio, onde rolou o show da banda Unmei. Apesar de ter uma formação tipicamente de banda de rock e de não economizar em distorções e solos, a Unmei toca apenas temas de anime e de totsukatsu (programas trash-cult como Jaspion e Jiraya). Com um repertório tão específico, ela só se apresenta em eventos de anime. E foi nessas convenções que os vocalistas Bruno Piatto e Thaís Sakura se conheceram. Desde 2006, eles participam de concursos de animekê – só pra esclarecer quem não sacou o trocadilho: imagine um karaokê, adicione os elementos “cardápio de músicas composto exclusivamente por temas de anime” e “competição” e tcharã! “Em 2008, tanto eu quanto a Sakura brilhamos bastante em eventos de anime”, conta Piatto. “Os concursos têm três categorias: Iniciante, A e Especial. Em 2008, ela passou pra categoria A e eu passei pra Especial”.

Bruno Piatto e Thaís Sakura agitando a massa otaku


Apesar da ligação umbilical com o mundo dos animes, o único integrante da Unmei que se considera um fanático é o guitarrista Rafa Weiss. Sakura gosta só de mangás e o baterista, Victor Hasselmann, não tem medo de assumir que odeia animes e mangás. Mas todos adoram as músicas dos programas e, no show, se empolgavam ao entoar versos como “Pelo mundo viajarei tentando encontrar/ um pokemon e com o seu poder tudo transformar”. O público também estava animado e cantou junto, levantou plaquinhas declarando seu amor pelo guitarrista Hell e foi ao delírio quando a banda encerrou o show com “Pegasus Fantasy”, tema de Cavaleiros do Zodíaco que deve ser a “Smoke on the Water” otaku.

Esquadrão nipo-nerd-headbanger

Mas nem toda banda de J-Rock está fadada a passar o resto da existência tocando para algumas dezenas de adolescentes fantasiados de Naruto. A Gaijin Sentai é um ótimo exemplo. Formada em 2004 por músicos com idade média de 25 anos residentes em Caraguatatuba, Mogi das Cruzes e São Paulo, começou como uma brincadeira: “A gente montou a banda pra tocar músicas do Jaspion, Changeman, Kamen Rider, essas séries que passavam na rede Manchete”, conta o vocalista Nordan Manz. O nome Gaijin Sentai significa “esquadrão estrangeiro” e já é uma referência aos programas, assim como o visual da banda: “Nesses esquadrões, cada herói usa uma cor na roupa de batalha. Nós usamos verde para o tecladista, azul para o guitarrista, vermelho para o baixista e amarelo para o baterista”, detalha o tecladista Jefferson Amorin.

Gaijin Sentai e seu figurino inspirado nos seriados da Manchete


O que diferencia a Gaijin Sentai é que, apesar do compromisso inicial ser com a diversão, todos os integrantes já tinham experiência profissional com música. Além disso, o grupo vai além da mera reprodução de temas de seriado e aposta em composições próprias em que a influência da música de anime e de totsukatsu é misturada com hard rock, heavy metal e enka, a música tradicional japonesa. No caso da faixa “Jaguatiman vs Sunrider”, disponível para audição no myspace da banda, o caldo é engrossado por tambores de maracatu. A música foi escrita especialmente para uma parceria com o cantor japonês Eizo Sakamoto (ex-JAM Project, Anthem e Animetal), que a Gaijin conheceu no Anime Friends de 2004. “Um personagem representa o Brasil e outro, o Japão. A gente criou o Jaguatiman, que é de “jaguatirica”, e o “cavaleiro do sol”, que representa os valores do Japão, e buscamos na música elementos que pudessem refletir isso. Usamos tambores japoneses (taikô) e a percussão e o ritmo brasileiro do maracatu”, explica Nordan.

Com ao menos trinta shows por ano, a Gaijin já tocou em eventos da colônia japonesa no bairro paulistano da Liberdade, em festivais de rock e metal, na Virada Cultural, em SESCs e em eventos de anime na Argentina, no Chile e em Portugal (onde também fez um pocket show em duas filiais da rede de livrarias Fnac). Tem um fã-clube oficial chamado Gigantes Guerreiros e um admirador mais exaltado tatuou o símbolo da banda, mesmo sob os gritos de “não faz isso, peloamordedeus!” do esquadrão todo. Sobre a suposta acomodação dos fãs de J-rock, Nordan é categórico: “Eu nunca culpo o público, ele não está acomodado. Na verdade, foram as pessoas (das bandas) que não conseguiram cativá-lo”.

Outra iniciativa profissa é o site Radio Blast!, criado em agosto de 2007 pelos primos Hick Duarte e Gui Dix Est, de Uberlândia. Fãs de música pop oriental, eles montaram o site para mostrar que esse universo vai muito além dos temas de anime. “A rádio surgiu de um experimento simples: contratamos um servidor de streaming com limite para trinta ouvintes e começamos a colocar os programas no ar”, conta Rick. A web rádio cresceu tanto que, em dois anos, a capacidade de streaming teve que passar de trinta para 400 ouvintes. Atualmente, o site conta com cinquenta colaboradores, que fazem programas, assinam colunas e cobrem eventos e festivais no Brasil todo. Há bastante espaço para bandas nacionais de J-rock, mas de todas que já foram entrevistadas e perfiladas pelo Radio Blast!, Hick calcula que apenas umas cinco ainda estejam na ativa.

Saionará, trouxas

O J-rock é um universo que comporta grupos e artistas dos mais diferentes estilos (ou de todos os estilos misturados). Se você detestou o clipe postado lá em cima, tente conhecer as outras bandas citadas. Se continuar achando um lixo, tenho uma boa notícia: mantenha-se longe de eventos de anime e estará a salvo do J-rock. Mas se você se apaixonou já à primeira audição ou superou o estranhamento inicial e acabou gostando do som, tenho uma má notícia: J-rock vicia. Você passará horas fuçando na internet, ficará com músicas martelando na cabeça e se surpreenderá cantarolando em “japonês embromation”. Quando começar a sonhar com “Pegasus, ajuda o teu cavaleiro/ Gelo, dragão e os guerreiros...”, talvez seja hora de procurar ajuda profissional.

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